MOURINHO DA CULTURA

Wednesday, January 03, 2007

20 ANOS DA MORTE DE ANDREI TARKOVSKY (1932-1986)



por José Vieira Mendes

1 INTRODUÇÃO
A 29 de Dezembro comemora-se os 20 Anos da Morte do mais conhecido cineasta soviético e aquele que mais impressionou o mundo contemporâneo criando talvez as mais polémicas clivagens não só do ponto de vista político como estético. Com nove filmes em 26 anos de carreira o premiadíssimo Andrei Tarkovsky, morreu em Paris vítima de cancro na garganta em 1986. Foi amado e odiado pela cinefilia e pela crítica e sempre manteve uma posição extremamente crítica em relação ao Realismo Soviético, que lhe traria alguns problemas com as autoridades durante quase toda a sua carreira. Mas foi, de facto, um cineasta difícil de digerir, aliás como a maioria dos seus filmes. A título de exemplo vejamos o catálogo do Ciclo Ficção Científica realizado na Fundação Calouste Gulbenkian em 1984, dois anos antes da morte do realizador. Na sua ficha filmográfica, João Bénard da Costa dedicava-lhe as mais duras palavras e a razão de Solaris (“o 2001 dos pobres”) figurar no ciclo: “Que a cinematografia soviética, dos anos 60 a esta parte, é normalmente fraca, mete-se pelos olhos dentro de quem os não tem fechados. O que não quer dizer que não haja por lá alguns grandes cineastas, como Lariza Shepitko, Paradjanov, Klimov, Panfilov, Kromeno ou Hamraev. Mas Tarkovsky, o mais célebre dessa geração, nunca me convenceu. Não há filmes mais chatos, nem feitos com mão mais pesada e aí dou razão a António-Pedro Vasconcelos quando diz que ‘Stalker não dá mesmo para acreditar’, apesar das unânimes aclamações que obteve”. De facto, a obra de Andrei Tarkovsky não é propriamente fácil já que é quase sempre um mergulho na árdua e intrincada tarefa do autoconhecimento e da espiritualidade humana. O seu cinema propõe como que uma reeducação do olhar e uma reinvenção das complexas relações entre o real e o sonho, ou entre o eterno e o efémero. Tarkovsky explora ao máximo o poder das imagens-tempo, como aquelas que estão mais directamente ligadas à subjectividade e ao mundo interior de um indivíduo. Os seus filmes, como veremos a seguir, adquirem um caráter metafísico, de permanente pesquisa e energia, que raramente existe em outros cineastas mais intimistas, embora por vezes sejam ‘chatos’ e muito complicados de assimilar.

2 UM ALUNO BRILHANTE
Nascido em Moscovo, filho do poeta russo Arseni Tarkovsky, Andrei sempre se interessou por todas as artes. Estudou música e pintura durante a sua juventude, ao mesmo tempo que completava uma formação universitária entre o Instituto de Línguas Orientais e a Geologia, área onde acabou por trabalhar cerca de dois anos na Sibéria. Mais tarde interessou-se também pelo cinema e numa mudança radical na sua carreira ingressou na prestigiada Escola de Cinema de Moscovo, onde foi seguramente um dos alunos mais brilhantes. O seu primeiro filme Segodnya Uvolneniya ne Budet (1959), orientado pelo mestre Mikhail Romm, do qual foi o seu discípulo dilecto, tratava-se de uma história bastante simples, mas os meios, o rigor histórico e a disciplina artística eram já de alguma forma grandiosos para um trabalho de escola. Uma grande quantidade de bombas é encontrada numa cidade russa e os militares são chamados para tentar removê-las, isto num filme que exigiu para além de tudo um grande número de figurantes, veículos e actores rigorosamente vestidos à época da II Guerra Mundial.

3 DA ESCOLA AO LEÃO DE OURO
A Caldeira a Vapor e o Violino (Katoki I Skripka, 1960), foi o filme de fim de curso de Tarkovsky, uma obra que chamou imediatamente a atenção tanto de professores como da critica empenhada em encontrar um novo símbolo, para além de o filme ter recebido vários prémios universitários. A Caldeira a Vapor e o Violino conta a história de Sasha, um jovem violinista que não se relaciona com os outros miúdos do prédio onde vive, pela simples razão que tem uma sensibilidade mais apurada. Por isso ganha amizade por um operário de um compressor a vapor, isto numa referência directa a um dos temas favoritos do cineasta, que sempre defendeu uma aproximação maior entre a arte e o povo, ao mesmo tempo que a presença da severa figura da professora do rapaz, parecia representar uma crítica directa ao controlo rígido exercido pelo regime à produção cultural na URSS. A Infância de Ivan (Ivanovo Detstvo, 1962), a sua primeira longa-metragem, é mais uma vez um filme que se desenrola num ambiente de guerra onde não há heróis, actos de bravura ou espaço para grandes patriotismos e que tem, como aliás o primeiro, uma criança como protagonista. Ivan é um miúdo de 12 anos que ficou sem família devido ao absurdo do próprio conflito. Para sobreviver, trabalha para o exército russo, em perigosas missões de reconhecimento, surpreendendo os soldados mais experientes por não demonstrar qualquer medo no campo de batalha. A sua personalidade forte, que enfrenta os superiores e quase sempre discorda das suas ordens, é brilhantemente interpretada pelo jovem Nikolai Burlyayev, que o realizador dirige com grande mestria, conseguindo momentos de rara beleza e um lirismo nunca antes visto no Ocidente. Por isso, Tarkovsky ganhou o Leão de Ouro em Veneza, num ano em que na competição estavam também Godard, Kubrick, Pasolini e Polanski.

4 UMA CONCEPÇÃO DA ARTE E DO ARTISTA
Andrei Rublev (Andrey Rublyov, 1966), o seu trabalho seguinte, é considerado por muitos críticos como um dos filmes russos mais importante da história mundial do cinema. Com um argumento dividido em oito episódios, dispostos sem qualquer ordem cronológica, Andrei Rublev pretende ser muito mais que uma simples biografia do personagem-título. Durante as suas quase três horas e meia de duração, assistimos a uma profunda análise do pensamento do monge-pintor e do seu tempo, desvendando as origens de sua atormentada personalidade artística. Rublev (Anatoli Solonitsyn), que passou quase toda sua vida dentro de um mosteiro, não se sentia capaz de pintar diante da terrível situação da Rússia feudal: miséria, opressão, paganismo, violência, invasões. Que sentido teria a arte perante todos estes males? Qual o papel e a responsabilidade do artista perante uma sociedade em desagregação? No magnífico episódio do sineiro (curiosamente interpretado pelo mesmo protagonista de A Infância de Ivan), Tarkovsky através das imagens defende que o artista não pode ficar alheio à realidade que o rodeia. Deve pelo contrário tirar proveito dela nas suas obras, revelando aquilo que o homem comum não consegue ver, numa metáfora das dificuldades enfrentadas pelos artistas soviéticos em representar uma nação muito diferente da que impunha o regime comunista. Filme polémico e interventivo, fez com que Leonid Brezhnev, o então líder da URSS, exigisse uma exibição privada antes da estreia pública nas salas oficiais. Furioso com o que viu, Brezhnev acabou por sair da sala antes do final da projecção e o governo acabaria por censurar a obra, que não pôde ser exibida na URSS até 1971, alegando-se que o cineasta havia promovido distorções históricas inaceitáveis.

5 HUMANISMO EXISTENCIAL: DE ‘SOLARIS’ A ‘STALKER’
Solaris (Solyaris, 1972) é uma adaptação do famoso romance ficção-cientifica do escritor polaco Stanislaw Lem. A história acompanha a jornada do psicólogo Kris Kelvin (Donatas Banionis), enviado ao espaço para investigar os estranhos acontecimentos ocorridos na distante estação espacial que orbita o planeta Solaris. Kelvin, é surpreendido ao descobrir que um dos tripulantes se tinha suicidado e outros dois estavam à beira da loucura. De alguma forma, o misterioso oceano de Solaris parece ter a capacidade de influenciar a mente humana, fazendo com que os que entram em contacto com ele recebam ‘visitantes’ inesperados. E Kelvin não é excepção já que depois de algum tempo de permanência na estação orbital, reencontra a sua esposa, falecida há dez anos. A partir daí, o filme passa a examinar os conflitos e as ambiguidades de um homem que recebeu a excepcional oportunidade de reparar os erros do seu passado. Essencialmente, Solaris questiona as motivações da humanidade na sua inútil tentativa de encontrar a solução para suas dúvidas e problemas existenciais na vastidão do Universo. Desde o seu lançamento até hoje, Solaris é por muitos, e exageradamente, considerado como uma resposta soviética a 2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odissey, 1968), de Stanley Kubrick. Sem dúvida alguma, tratam-se de duas obras-primas do cinema, mas o termo ‘resposta’ não será propriamente o mais adequado para comparar dois filmes que de alguma forma se complementam mutuamente. E Solaris nunca será de todo um 2001 dos pobres.
O Espelho (Zerkalo, 1975) alinha mais ou menos pelo mesmo tema da pesquisa da mente humana, já que é uma formidável exploração dos mecanismos que constituem a memória. Baseado nas poesias de seu pai, Arseni, que constituem a narração que acompanha todo o filme, torna-o talvez o mais autobiográfico do realizador. O protagonista viaja a um passado que continua a existir nas suas mais recônditas lembranças. Pouco se vê do seu presente, mas podemos compreendê-lo quase inteiramente, entrando em contato directo com seu mundo interior, descobrindo o que pensa, os seus maiores sonhos, traumas e desejos. Assim, a memória é a pedra fundamental da nossa personalidade, pois sem ela não temos passado e, consequentemente, nada somos.
Stalker (1979) é seguramente um dos filmes mais visionários de Tarkovsky, que atravessa também o universo da ficção científica e do ensaio filosófico sobre uma região isolada e cercada de mistérios conhecida como ‘Zona’. A origem dos incríveis poderes deste local é aparentemente desconhecida, sendo atribuída à queda de um meteorito ou, ainda, a uma inexplicável presença alienígena. O facto é que qualquer indivíduo que penetre na ‘Zona’ e chegue a uma determinada sala, todos os seus desejos podem tornar-se realidade. No entanto, somente certas pessoas, conhecidas como stalkers, são capazes de evitar as armadilhas e chegar com segurança ao local. Quando dois intelectuais (um cientista e um escritor, provavelmente representando a dicotomia razão versus emoção) resolvem desvendar os segredos da ‘Zona’, um stalker é contratado para guiá-los através desse mundo desconhecido. Os três viajantes deparam-se com a entrada numa sala misteriosa, mas hesitam em entrar, talvez porque se tiverem todos os seus desejos realizados, não encontrarão mais motivos para viver. Ou ainda a possibilidade de sentirem algo mais sombrio: se desejos inconscientes se materializarem, os resultados podem ser imprevisíveis. Stalker é assim um filme que lança um olhar crítico sobre o mundo actual, excessivamente niilista e dependente da ciência e da tecnologia. Essa intenção fica clara, não apenas na amarga decepção do stalker e dos seus dois companheiros de jornada, mas também no paralelo que o realizador faz entre a cena inicial e a final. Logo no começo do filme, quando vemos o copo trepidando na mesa ao som do ruído de um comboio, imediatamente estabelecemos uma relação de causa/efeito entre os dois fenómenos. Apenas na cena final, em que a verdade demonstrada é bastante diferente da nossa primeira suposição, percebemos como a nossa visão é limitada. Estamos de tal forma condicionados pela sociedade moderna que nem sequer levamos em conta qualquer hipótese de explicação não corroborada pela ciência e pelas leis científicas.

6 NO EXILIO: DE ‘NOSTALGIA’ A ‘O SACRIFÍCIO’
Em Nostalgia (Nostalghia, 1983), o realizador trata do regresso de uma grande figura da cultura russa, acompanhando a viagem do poeta Andrei Gorchakov, que vai à Itália com o objectivo de recolher material sobre a vida do músico Sosnovsky. Acompanhado por Eugénia, a sua guia italiana, o protagonista conhece Domenico, um morador local que todos consideram um louco, pois, no passado, fechou-se com a família dentro de casa por vários anos, esperando pelo fim do mundo. Gorchakov e Domenico são muito diferentes, mas ambos sentem-se incompreendidos e vivem num isolamento que cresce a cada momento. O primeiro é acometido de um profundo sentimento de saudade da sua casa, da terra natal e dos seus entes queridos; o segundo entende que a sociedade tomou um rumo equivocado e que, para corrigi-lo, seria necessário recomeçar do zero. Um e outro acabam por materializar as suas ideias e a sua fé de forma absolutamente arrebatadora: Domenico declamando fervorosamente para as silenciosas estátuas na praça, enquanto Gorchakov cumpre sua promessa de atravessar a piscina de Santa Catarina com a pequena vela acesa. Este filme foi o primeiro realizado por Tarkovsky fora do seu país e talvez seja justamente por isso que o sentimento de nostalgia se evidencia nele de forma tão incisiva. Depois de concluído o filme, Tarkovsky e a mulher, que sempre demonstraram uma certa oposição ao regime, decidem desertar e nunca mais voltaram à URSS, apesar do cineasta passar o resto de seus dias tentando persuadir as autoridades soviéticas a permitir que seu pai e seu filho viessem ao seu encontro.
O último trabalho do realizador foi O Sacrifício (Offret - Sacrificatio, 1986). Filmado na Suécia e pouco tempo antes de sua morte, por cancro, ganhou quatro prêmios no Festival de Cannes e conta com a participação de colaboradores habituais de Ingmar Bergman, um dos cineastas que Tarkovsky sempre admirou. Alexander (Erland Josephson), um actor retirado dos palcos, sente-se preocupado com a perda de espiritualidade no mundo, mas apesar disso a sua família e amigos reúnem-se para festejar o seu aniversário. A aparente melancolia do grupo transforma-se num incontido desespero quando rebenta uma guerra nuclear entre as potências globais. Face à iminente possibilidade de aniquilação, o protagonista toma a única atitude capaz de salvar aqueles que ama: visitar a estranhíssima Maria, que seu amigo carteiro jura ser uma feiticeira. Com uma fotografia fantástica e discutindo temas invariavelmente fundamentais ainda para o mundo de hoje, o filme é uma verdadeira elegia da fé e da incrível força de que dispõe o homem comum para lutar contra a predeterminação e estabelecer um destino próprio, tanto para si quanto para seus semelhantes.

7 FILÓSOFO DO CINEMA: AS INFLUÊNCIAS DE KIERKEGAARD
Mais do que um grande realizador, Tarkovsky provou ser também um grande pensador da sétima arte. Baseando-se nos seus conhecimento generalistas de todas as artes, em Esculpir o Tempo (edição brasileira da Martins Fontes, 2002), o seu livro onde teoriza algumas das suas concepções, traz-nos novos pontos de vista sobre o cinema, como a de que este não seria apenas formado por uma amálgama das outras artes (literatura, música, teatro, pintura, etc). Tal combinação, segundo ele, resultaria apenas numa forma híbrida, vazia e pretensiosa da imagem. Pelo contrário, defende o cinema como forma de arte absolutamente autónoma, uma vez que seu princípio estético é único e só passou a existir com o advento do cinematógrafo: o registro da impressão do tempo. Daí a afirmar que, da mesma maneira como um escultor toma um bloco de mármore e nele trabalha para dar forma à sua visão artística, o cineasta toma um bloco de tempo e parte dele para desenvolver sua obra.
Tanto a concepção estética como a atmosfera emocional dos filmes de Tarkovsky sugerem a crença do cineasta numa afirmação radical do indivíduo, curiosamente, muito semelhante à encontrada na filosofia de Kierkegaard. Para o filósofo dinamarquês, a individualidade define nossa existência e não o individualismo. No entanto, essa individualidade não deve ser vista apenas como o conjunto de características que nos distingue uns dos outros, mas, sobretudo, como a angústia do aqui e agora, o desespero provocado pela solidão do homem diante do infinito. Basta-nos para confirmar esta ideia recordar de alguns dos mais marcantes personagens de Tarkovsky, como Kris Kelvin (Solaris), Domenico (Nostalgia) e Alexander (O Sacrifício), para repararmos que neles vamos encontrar exactamente essa busca da individualidade, no limiar da compreensão da nossa natureza e limitações humanas. De facto, no momento em que o homem aceita a sua natureza finita e se apercebe que esta nada mais é do que uma fase da sua tranjectória para se tornar parte de algo muito maior e mais complexo, descobre assim a finalidade e a razão da sua existência. Nos planos longos, densos e de intensa reflexão filosófica, tão característicos do cineasta, arriscamo-nos a conceber também um Deus que está muito mais próximo do que poderíamos imaginar. Mas acima de tudo, Andrei Tarkovsky acreditava que a legitimidade de um autor consiste em permitir que o público possa reflectir e ir muito mais além do que é dito explicitamente nos seus filmes.

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