MOURINHO DA CULTURA

Tuesday, July 29, 2008

VENEZA 65: UMA SELECÇÃO DE PESO



O realizador Manoel de Oliveira, o actor Joaquim de Almeida e o produtor Paulo Branco vão assegurar as presenças portuguesas na Mostra de Veneza, cuja 65ª edição acaba de ser apresentada pelo seu director, Marco Müller. A decorrer entre 27 de Agosto a 6 de Setembro, o festival abrirá com a projecção, em antestreia mundial, de Burn After Reading, de Joel e Ethan Coen, com George Clooney, Brad Pitt, Frances McDormand e John Malkovich estrelas que vão estar no Lido de Veneza. Este ano, um júri oficial muito sui generis, presidido por Wim Wenders, vai ter que decidir a quem entregar o Leão de Ouro, e os outros prémios do certame, a uma selecção de peso, onde marcam presença grandes realizadores da cinematografia mundial, Darren Aronofsky (The Wrestler), Pupi Avati (Il papà di Giovanna), Kathryn Bigelow (Hurt Locker), Semih Kaplanoglu (Süt), Takeshi Kitano (Akires to kame/Achilles and the Tortoise) e Barbet Schroeder (Inju, la Bête dans l’ombre), Tariq Teguia (Gabbla/Inland), YU Lik-wai (Dangkou/Plastic City). Portugal estará simbolicamente representado com a curta-metragem Do Visível ao Invisível, de Manoel de Oliveira e em competição vão estar Noite de Cão, de Werner Schroeter, filme baseado no romance do uruguaio Juan Carlos Onetti, produzido por Paulo Branco e Joaquim de Almeida, que surgirá com o protagonista The Burning Plain, a estreia como realizador do argumentista Guillermo Arriaga (Babel). Destaque ainda para um surpreendente regresso de Debra Winger, umas das actrizes da década de 80 que deixou boas memórias em Rachel Getting Married. Recorde-se que a Mostra de Veneza é o festival de cinema europeu que melhor tem conciliado, pelo menos desde a direcção de Müller, com mandato por mais quatro anos, a arte com a indústria. A prova disso é que, na edição de 2007, os cerca de 22 filmes apresentados que estiveram depois nas nomeações para os Óscares.

Tuesday, July 22, 2008

O VÉU E A VONTADE



A grave crise política na Turquia, por um aparente regresso ao islamismo, devido à decisão constitucional de permitir às mulheres usarem o véu nas universidades públicas, tem provocado uma exagerada reacção de alguns governos europeus (Espanha e França, entre outros), e uma certa islamofobia dos preservacionistas culturais do ocidente, em relação às restrições que o Islão impõe à indumentária, liberdade e direitos das mulheres nos países islâmicos. Efectivamente, esta reacção está fortemente condicionada pelo clima social e político mundial, depois dos atentados de 11-S em Nova Iorque e 11-M em Madrid. A Burka Vermelha, uma belíssima curta-metragem de Roxana Pope, integrado no ‘Tão Perto/Tão Longe’ do ciclo ‘Distância e Proximidade’, que está a decorrer na Fundação Calouste Gulbenkian, é um grande exemplo da interculturalidade e de como muitas mulheres iranianas tapam o rosto de livre vontade, com as coloridas Nequab, símbolos de beleza e míticos adornos, descobertos por Marco Polo no século XII, e que deram origem às máscaras do Carnaval de Veneza.

A propósito ainda desta temática recorde-se as teorias do ilustre Professor Kwame Anthony Appiah, cidadão norte-americano de origem britânica-ganesa, apoiante de Barack Obama, e ele próprio uma referência viva das teorias da diversidade cultural, nas suas obras The Ethics of Identity e Cosmopolitanism: Ethics in the Strange World, obras essas incontornáveis para o estudo da interculturalidade. Appiah examina as relações lógicas entre os valores e as ideias que sustentam o cosmopolitismo, patriotismo, liberalismo avançando a tese de que estes ideais e sentimentos, longe de serem intrinsecamente contraditórios, podem e devem ser usados livremente pelos homens e mulheres contemporâneos em busca de identidades que protejam as suas liberdades, autonomia e compromissos com a ordem democrática e individualista. Na verdade, e neste sentido de liberdade, de uma globalização humanista, de aceitação entre diferentes, recriação de novas culturas e encontro de civilizações, as mulheres islâmicas têm tanto direito de usar as suas indumentárias tradicionais (Hiyab, Burka, Niquab, Shayla, Chador), como os jovens africanos de usar as camisas coloridas, com o nome e o número estampado nas costas de um qualquer ídolo do futebol mundial.



O feminismo e alguns governos ocidentais consideram o véu um símbolo de submissão e associam-no muitas vezes ao fundamentalismo islâmico. No entanto, muitas mulheres islâmicas, sejam elas progressistas ou conservadoras – incluem-se, por exemplo as esposas do primeiro-ministro Erdogan (líder do AKP) e do presidente da República da Turquia, Abdulá Gul, um factor que de certo modo agudizou esta crise pró-nacionalista – usam o véu porque querem e acham bonito. Dir-se-ia que, o ocidente tem quase uma obsessão, contra uma elegante indumentária que faz parte da sua cultura e que não é de todo um símbolo de submissão social, nem de restrição aos seus direitos. Por outro lado, esta reacção anti-véu faz com que muitas mulheres com vontade de se cobrirem não o façam por medo ou receio de discriminação ou represálias. A necessidade de defender a sua identidade perante esta islamofobia ocidental fez com que se refugiem no mais banal dos argumentos: a moda. As mulheres islâmicas usam véu porque a tradição e o Corão assim o impõem, (sentem-se mais protegidas e respeitadas perante Deus), mas é visível que a mediatização da moda fez com que muitas raparigas (mesmo ocidentais) se identificassem ironicamente com alguns designers de moda, que cobrem o rosto dos manequins. E, assim, sintam a utilização do véu como uma moda, uma forma elegante de andarem bem vestidas, mantendo ao mesmo tempo a sua identidade cultural e orgulho de serem mulheres e islâmicas. As turcas, integradas numa Europa que se desejaria mais unida culturalmente, riem-se desta visão demasiado redutora e da tanta preocupação por andarem tapadas, pois fazem-no quando querem e quase sempre em dias festivos, independentemente das medidas constitucionais. O ocidente parece recusar que a beleza e a sensualidade das mulheres islâmicas não se encontram na anorexia, no bronzeado do rosto, ou na liberdade para mostrar um decote mais audaz ou as pernas despidas e realçadas por uma saia curta ou uns calções. A nudez, a banalização do corpo, da sensualidade e do sexo, o hedonismo, tornaram-se óbvios símbolos da pós-modernidade das sociedades ocidentais, sobrepondo-se à fantasia e ao exotismo erótico oriental fortemente presentes na literatura tradicional. Uma coisa são os véus, outras são as questões dos direitos das mulheres, da violência exercida sobre elas, do acesso ao trabalho e aos lugares de poder no Estado, que está enraizado nas sociedades islâmicas, como é retratado num belíssimo documentário, What a Beautifull Democracy!, uma realização colectiva, que reflecte a batalha das mulheres para serem eleitas para o parlamento turco, obra esta inédita em Portugal. A questão dos direitos das mulheres, da submissão, continua apesar de tudo a ser mais ou menos abrangente às sociedades ocidentais, mais progressistas ou mais conservadoras. Hebba Aref e Shamina Ablelfadeel, duas cidadãs norte-americanas, num comício de Barak Obama, foram impedidas de subir ao palco, porque usavam véu. O mais que provável futuro presidente do EUA, aquele em quem todo o mundo deposita enormes esperanças, não quis juntar-se a estas duas mulheres, não fossem os seus votantes pensarem que estaria do lado das oprimidas mulheres islâmicas, contra a imagem de uma mulher moderna, democrata, emancipada e com pleno acesso ao poder como a Senhora Clinton.

José Vieira Mendes, jornalista, Julho 2008

Monday, July 21, 2008

ISTAMBUL: CAPITAL DO MULTICULTURALISMO





Istambul é uma cidade do ‘outro mundo’ e está povoada de artistas que tentam combinar as suas riquezas culturais e tradicionais com a cultura europeia e, além do mais, imbuídos de uma espantosa energia no campo da criação e da arte contemporânea. Isto, contrastando com uma Europa estagnada, renitente à integração da Turquia, mas que parece procurar cada vez mais os novos valores estéticos e culturais nos fenómenos das migrações e do multiculturalismo. Há muito que Istambul é a capital do multiculturalismo, isto praticamente desde o princípio do mundo. Da literatura à gastronomia, passando pelo cinema e vídeos, dança, música alternativa e música tradicional, em Istambul tudo parece associar-se e fundir-se numa amálgama de culturas em trânsito, em vários sentidos, renascendo numa espantosa combinação e harmonia criativa.



Para quem visita Istambul, a capital cultural da Turquia, Beyoglu - bairro 'in' da cidade – tem um ambiente cosmopolita que se infiltra no nosso imaginário criando momentos tão soltos, quanto insólitos, em relação ao que para nós são esses estranhos contrastes da modernidade com a tradição, do espírito do Ocidente com o Oriente. No entanto, em toda a cidade, do Sulthanamet a Beyoglu, interligam-se as nossas reminiscências de um passado cultural, estudadas na história de Constantinopla ou de Bizâncio, com as gentes, a música tradicional turca, os meazzines das mesquitas, os belos palácios dos sultões, os sons ocidentais e orientais, a paisagem do Bósforo com a ponte em fundo, aliás bastante semelhante à Ponte 25 de Abril, e até a deliciosa comida nos seduz o paladar.



E tudo isto de uma forma extraordinariamente envolvente e inebriante. Ao falar apaixonadamente de Istambul (como falo dos livros do Orhan Pamuk e ele próprio da sua cidade em Istambul-Memórias de uma Cidade), ao partilhar esta emoção, o que imediatamente surge é a memória do cheiro a Lisboa, misturando-se ao odor do kebab e do chá de maçã. Da parte alta da cidade antiga de ruas estreitas, parecida com Alfama ou o Bairro Alto, vê-se a ponte, o rio, os ‘cacilheiros’, os navios a atracarem. E depois Istambul tem aquela luz branca muito parecida com a nossa, realçada pelos minaretes das mesquitas e das abóbadas de azul rosáceo. Referindo ainda o Istanbul Modern, um dos mais belos museus de arte contemporânea — e mais bem localizados — que nos é dado a conhecer. É de um requinte espantoso e tem muito em comum com o CCB, quanto mais não seja por estar próximo da água. O mais difícil de definir é a sensação de que há algo de tão perto como de tão longe entre Lisboa e Istambul. Está-se longe, estando-se em casa.



Rezar nas mesquitas, cruzar o olhar das pessoas na rua e nas lojas ou discutir com os vendedores do Grande Bazar e do Mercado de Especiarias, que falam tanto em turco, não os fossemos entender, como em inglês, citando a nossa selecção nacional de futebol e o grande Cristiano Ronaldo. Istambul é uma cidade de sensações, de cheiros do bazar das especiarias, de ambientes orientais e ocidentais, harmoniosamente combinados, das águas escuras e do odor do Bósforo...e a cidade mais do que uma ponte, é a amarra que pode assegurar uma união cultural e produzir efeitos inesperados entre a Europa e a Ásia.

José Vieira Mendes, Jornalista, Julho 2008

Sunday, July 20, 2008

A HORA DA TURQUIA


Duas notícias recentes marcam a actualidade relativamente à Turquia e à sua relação com a Europa e o mundo. Uma refere-se a Fethullah Güllen, como um dos intelectuais mais influentes no mundo, o homem que defende a conciliação do Islão com a democracia. A outra, paradoxalmente, sobre a emenda constitucional, que levantaria a proibição das mulheres turcas de usar o véu nas universidades, que a justiça anulou. As grandes resistências (internas e externas) a uma adesão plena da Turquia à UE, a instabilidade político-religiosa, as questões dos direitos humanos e das mulheres, as insuficiências democráticas, não têm impedido este país de viver uma vibrante renovação cultural e uma explosão ao nível artístico. Um impulso de mudança, reflexo de uma amálgama de sinergias que despontou naturalmente, criando uma identidade única e enraizada na sua própria complexidade. Uma nova realidade que revela ser inspiradora e apelativa a uma outra aproximação entre várias histórias, culturas e povos que, apesar de diferentes, se inspiram na mesma energia, a emergência de uma criatividade contemporânea e uma outra forma de sentir o futuro.
Orhan Pamuk, Prémio Nobel da Literatura 2006, através do seu maravilhoso livro, A Cidadela Branca, revela-nos um romance iniciático e encantatório da sua obra, uma marca da cultura turca e da procura da identidade e de uma nostalgia perdida do Ocidente. Istambul – Memórias de uma Cidade, onde nasceu e vive Pamuk, transformou-se numa inspirada autobiografia e num guia de viagem, que é uma obra-prima da literatura contemporânea, finalmente editada em Portugal. Contudo, além de Pamuk, e conhecidas as suas posições políticas de intelectual incómodo, tanto para os islamitas radicais como para os fervorosos nacionalistas, a Turquia tem revelado muito dinamismo do ponto de vista cultural. O realizador germano-turco Fatih Akim, no documentário Crossing the Bridge - The Sound of Istanbul (2006), despertou-nos para a magia dos sons de fusão da música turca e alternativa. Como aliás os seus filmes, A Noiva Turca ou Do Outro Lado, histórias passadas entre a Alemanha e a Turquia. O cineasta Nuri Blige Ceylan (Uzak, Climas, Three Monkeys) é uma grande referência do cinema de autor, mais ainda agora que se afirma com uma obra fotográfica de uma beleza surpreendente. Os Poemas de Amor, de Rumi, e os Poemas do Exílio e da Prisão, de Nâzim Hikmet, são clássicos da literatura mundial e o primeiro a principal referência do sofismo (a doutrina pacifista que influencia Güllen), ambos livros de cabeceira para quem gosta de adormecer ao som das palavras da vida. Existe na Turquia uma grande apetência para as experiências ao nível das artes visuais e performativas, em paticular do teatro e da dança, experiências essa que ainda não chegaram a Portugal com a relevância merecida, mas que vale a pena conhecer, com excepção das surpreendentes obras coreográficas de Aydin Teker e Mustafa Kaplan, que tivemos a oportunidade de ver no Alkantara Festival. Depois de todas estas referências às quais a nossa memória nos agarra, há ainda o filme com personagens reais, Tintin et Le Mystère de la Toison d’Or (1961), rodado em Istambul, uma cidade onde temos a sensação de encontrar as origens, as raízes espirituais e culturais da Europa de hoje.

José Vieira Mendes, jornalista, Julho 2008

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