MOURINHO DA CULTURA

Tuesday, November 14, 2006

CINEMA PORTUGUÊS: ARTE OU INDÚSTRIA?






Por José Vieira MENDES

‘Tudo o que de bem ou mal nos acontece cá em baixo, está escrito lá em cima.’

Tiago, em “O Fatalista” (2005), de João Botelho

O cinema português sofre de um problema, que não lhe é exclusivo, mas antes uma questão que abrange as cinematografias da periferia europeia e mesmo do próprio cinema europeu em geral, que continua a viver ainda em parte no dilema entre uma produção de cariz artístico — tradicionalmente subsidiada pelo Estado —, o chamado cinema de autor, e uma produção comercial que aparentemente não consegue encontrar o seu espaço no plano dos espectadores. No entanto, o cinema português padece de algumas particularidades muito próprias, que dizem respeito, em primeiro lugar, com a nossa dimensão, e depois numa certa mentalidade que abrange outros sectores da vida cultural.

Altos e baixos
É verdade que a cinematografia portuguesa historicamente tem tido altos e baixos no que diz respeito aos níveis de produção e atracção de público(s). Houve um período de grande apogeu, nas décadas de 30 e 40 com o Estado Novo, na tentativa de apoiar uma pequena indústria que o servisse, e que deu origem primeiro a um grande esforço criador — “Nazaré“ e “Maria do Mar“ (1930), de Leitão de Barros, “Aniki-Bóbó“ (1942), de Manuel de Oliveira —, e depois a alguns sucessos da comédia popular: “A Canção de Lisboa“ (1933), de Cottinelli Telmo, “O Pai Tirano“ (1941), de António Lopes Ribeiro.
Os anos 50, e até 1962, é um período de decadência, podemos lembrar apenas “Rapsódia Portuguesa“ (1958), de João Mendes, sendo 1955 o ano zero — em que não se produziu qualquer filme português. As décadas de 60 e 70 viram nascer o movimento do chamado ‘cinema novo português’, influenciado pela ‘política de autor’ vinda de França. Tratava-se de um cinema fortemente apoiado em primeiro lugar pela Fundação Calouste Gulbenkian e depois pelo Estado, que de alguma forma criou um ‘outro cinema’, mas que não fez grandes concessões em relação aos espectadores: “Verdes Anos“ (1963), de Paulo Rocha, “Belarmino“ (1965), de Fernando Lopes, “O Cerco“ (1970), de António da Cunha Teles. Esta ideia de ‘cinema de autor’ marca, de alguma forma ainda a cinematografia portuguesa de hoje, com uma ‘fractura’ corrente entre dois grupos de realizadores que formam duas distintas associações do sector, sendo que uns defendem mais o cinema como indústria, e outros como arte. A esse propósito, assumindo uma destas posições radicais, comentáva-nos o realizador João Botelho, aquando da estreia de “O Fatalista“, o seu último filme na Mostra de Veneza 2005: O cinema nunca foi uma arte pura (…). O cinema sempre foi uma relação entre um negócio e uma arte. Em Portugal (…) ainda temos a capacidade de fazer com que o cinema seja uma arte cinematográfica. Curiosamente, e apesar de tudo, as décadas de 80 e 90 viram nascer alguns casos de relativos sucessos de público: “O Lugar do Morto“, de António-Pedro Vasconcelos (1982/84) e “Adão e Eva“ (1995) e “Tentação“ (1997), de Joaquim Leitão; e a consagração da crítica e de prémios internacionais: “Recordações da Casa Amarela“ (1989), de João César Monteiro, ou “Vale Abraão“ (1993), de Manoel de Oliveira, acabando por haver um certo equilíbrio e compromisso entre a arte e a indústria.

2005, um ano de excepção
Infelizmente, nos últimos anos temos vivido uma situação que não é a mais famosa em termos de espectadores, com uma das taxas de afluência mais baixas da Europa em relação ao cinema nacional. Tendo em conta a situação, 2005 acabou por não ser um ano assim tão mau para o cinema português, com cerca de onze estreias de filmes portugueses nas salas e um número razoável de espectadores como não havia há alguns anos (cerca de 404.136, segundo os dados do ICAM-Instituto de Cinema Audiovisual e Multimédia). É um facto que foi quase só à custa de “O Crime do Padre Amaro“, de Carlos Coelho da Silva (317.234), já que houve outros filmes que tiveram investimentos de produção e promoção consideráveis, como “Manô“, de George Felner (1443), “Odete“, de João Pedro Rodrigues (7.019), ou “Alice“, de Marco Martins (33.489), este último em nossa opinião um dos melhores filmes portugueses dos últimos anos, que afinal não corresponderam às expectativas dos agentes envolvidos (autores, produtores, distribuidores, exibidores e do próprio Estado e televisões como principais financiadores).

A questão dos espectadores
O que explica então que filmes recentes, que até tiveram valores de investimento, quer em termos de produção, quer em termos de promoção -— outra das grandes insuficiências do cinema português, que não consegue fazer passar a sua mensagem promocional ou por vezes os próprios agentes promovem-no mal -— interessantes, como “Coisa Ruim“ (2006), de Tiago Guedes e Frederico Serra, “98 Octanas“ (2006), de Fernando Lopes, os referidos “Alice“ e “Odete, não conseguem por vezes encontrar a atracção junto do público necessária ao seu investimento artístico e financeiro? Outros, pelo contrário, como por exemplo a recente estreia de “Filme da Treta“, de José Sacramento (para já 50.000 espectadores no primeiro fim-de-semana de estreia) ou “O Crime do Padre Amaro”, de Carlos Coelho da Silva, conseguem números de bilheteira muito razoáveis, para o panorama generalizado.
Se olharmos do ponto de vista daquilo que é a recepção dos filmes, ou seja, quantas pessoas é que vêem e o que é que vêem, as coisas não são brilhantes. Mas também não são tão más como se pensa, se tivermos em conta, por exemplo, algumas estreias de filmes independentes americanos ou europeus (isto é, que não trazem a carga promocional de um ‘blockbuster’), que têm números muito semelhantes aos dos filmes portugueses. “Colisão”, de Paul Higgis, que ganhou o Oscar de Melhor Filme 2005, não chegou, nem de longe nem de perto, ao Top 20 dos mais visto (72.181) do ano. Mesmo assim, em 2005, em termos de espectadores, estamos com números inferiores à média. Recuperámos um pouco no 1.º semestre deste ano, curiosamente assistindo, e contra a corrente mundial, a um acréscimo do número generalizado de espectadores nas salas (cerca de 350 mil espectadores a mais em relação a 2005). Isto também se reflectiu um pouco no contexto geral nas escassas estreias de filmes portugueses, cerca de nove, sendo três delas documentários. À frente da lista dos mais vistos está “Coisa Ruim”, com quase 30 mil espectadores. Existem sempre, no entanto, os mais pessimistas como, por exemplo Miguel Somsen, que na ‘Modalidade Amadora’ (in Metro, 14/09/06) começa por dizer: O cinema português devia ser extinto. O crítico, depois de analisar os números do cinema português no 1º semestre de 2006, chega à seguinte conclusão: É preciso perceber se o cinema português é um negócio ou não. Se é um negócio que rende dinheiro ao Estado ou não. E se o Estado está disposto a financiar um negócio que não rende (…). Se não está, façam-se as contas, fechem-se os contratos, paguem-se as indemnizações, e transfiram-se os financiamentos para o teatro(…). O cinema português é uma modalidade amadora: se não funciona, se não tem público, se não tem qualidade, não pode ter desculpa- — deveria ser extinta.


A questão da diversidade
De facto, é um tanto exagerada esta posição, mas se olharmos à qualidade da produção nacional e à sua diversidade, as coisas também não são famosas. Tendencialmente, temos só um ou dois géneros de cinema (drama ou comédia) produzidos em Portugal nos últimos anos, o que não é de todo apelativo para conquistar novos públicos. Se encararmos outras questões para além do problema do financiamento, temos aí uma outra realidade, que, essa sim, é importante: o número de pessoas a trabalhar na ‘indústria’ directa ou indirectamente, ou em actividades relacionadas com o audiovisual. Neste aspecto, temos tido um crescimento exponencial nos últimos anos. Se olharmos à capacidade dos filmes portugueses aparecerem no circuito e nos festivais internacionais, também existiram alguns casos interessantes nos últimos anos. Além do incontornável Manoel de Oliveira, temos ainda a figura do realizador Pedro Costa e dos seus últimos filmes, “No Quarto da Vanda”, “Onde Jaz o Teu Sorriso?” e “Juventude em Marcha”, que transmitem uma imagem de uma certa originalidade ao cinema português. Começou também a surgir um grupo de jovens realizadores interessados em fazer filmes que agradem ao público, apresentando primeiras obras com relativo sucesso, ainda que já tivessem alguma experiência, como é o caso de Marco Martins (“Alice”), que trabalha essencialmente na publicidade, e mais um ou dois, como a dupla Tiago Guedes/Frederico Serra, que fizeram algumas curtas-metragens e televisão, e que com “Coisa Ruim” tentaram fazer um filme dentro do género fantástico, e João Pedro Rodrigues (um cinema de estética ‘gay’), que com “Odete” apresentou a sua segunda obra.

Afinal, arte ou indústria?
Tudo leva a crer que estamos num ponto de viragem em termos de produção cinematográfica. A nova Lei da Arte Cinematográfica e do Audiovisual (Lei n.º 42/2004), aprovada recentemente, pode vir a ajudar a modificar a situação, principalmente com a criação de um Fundo Destinado ao Fomento e Desenvolvimento do Cinema e do Audiovisual. Esta vai implicar, para além do Estado, um maior empenhamento dos privados e também algumas concessões da parte dos artistas e produtores envolvidos. Este ano, existiu claramente já um investimento das estações de televisão, principalmente das privadas, e de outras entidades, como o sector de distribuição, na produção cinematográfica. Já a tivemos o ano passado, com “O Crime do Padre Amaro”, que fez praticamente o ano do cinema português, e que é, na realidade, uma produção televisiva da SIC, e um filme totalmente suportado por dinheiro da estação. Aliás, o “Filme da Treta” teve como parceiro a distribuidora LNK Audiovisuais. Este ano, ou no início do ano que vem, ainda vão estrear mais filmes nesta situação, sem financiamento do Estado, o que, à partida, é um indicador de que poderá vir a crescer uma actividade cinematográfica fora do tradicional meio de financiamento assegurado principalmente pelo Estado.
Hoje em dia, com o digital e os meios técnicos disponíveis a qualquer um, é sem dúvida mais fácil e mais barato produzir um filme. Falar em indústria é que algo mais complicado. A actividade industrial implica uma produção em massa e em larga escala. Pelo menos, se utilizarmos a expressão ‘indústria’ apenas para referir a existência de um sector de actividade, ou seja, de um negócio rentável até certo ponto – pelo menos numa razoável afluência de espectadores. Isso até se implementaria facilmente com um ‘marketing’ mais agressivo e uma maior diversidade de géneros no cinema português. Agora, se entendermos como indústria a produção maciça, em larga escala, de obras cinematográficas, temos que ter consciência da dimensão do nosso mercado, e Portugal não tem condições para sustentar ou ser a base de uma indústria cinematográfica. Seria a ‘grande ilusão’. Falando de uma indústria, teríamos que pensar em produzir para quem? Isto é, produzir para os três milhões de pessoas em Portugal que vêem cinema, das quais apenas duzentas mil potencialmente veriam cinema português?
Resumindo, é impossível rentabilizar uma obra cinematográfica a partir dos seus custos para um número tão limitado de potenciais espectadores. Podemos antes pensar numa produção em escala, com ambições internacionais, valorizando por exemplo os países de expressão portuguesa, mesmo recordando que filmes portugueses têm que ser projectados com legendagem no Brasil, dada a dificuldade que os brasileiros têm em nos entender. No espaço europeu, não teremos qualquer hipótese de competir, a não ser com uma cinematografia alternativa — haverá sempre a barreira linguística — , a tal opção de cariz artístico, de cinema de autor, talvez a única em que temos algum espaço de manobra e que nos tem dado algum prestígio internacional.
É preciso produzir cada vez mais filmes, pois quanto mais se produzirem, tendenciamente melhores filmes se farão. Neste aspecto, há ainda que ter em consideração uma certa escassez de profissionais de produção no mercado português, que gira quase sempre à volta da figura de Paulo Branco, o maior produtor nacional, que tem tido, e segundo a velha máxima de que ‘em terra de cegos quem tem olho é rei’, quase todo monopólio da produção, distribuição e exibição nacional e internacional dos filmes portugueses.




Bibliografia

Livros

ESCUDERO, Garcia
Vamos Falar de Cinema, Livros RTP, Biblioteca Básica Verbo, Editoral Verbo, Lisboa, 1971.
ROSENFELD, Anatol
Cinema: Arte & Indústria, Colecção Debates, Editora Perspectiva, São Paulo, 2002.
CRETON, Laurent
Cinéma et marché, Armand Colin, Collection U, série ‘Cinéma et Audiovisuel’, Paris, 1997.
RAMOS, Jorge Leitão
Dicionário do Cinema Português 1962-1988, Caminho, Lisboa, 1989.
RAMOS, Jorge Leitão
Dicionário do Cinema Português 1989-2003, Caminho, Lisboa, 2005.

Revistas e artigos de jornal

MATEUS, José J.
‘Cinemas já recuperaram 350 mil espectadores em 2006’, in ‘Público’, 18 de Agosto de 2006.
SOMSEN, Miguel
´Modalidade Amadora’, Ponto de Vista, in ‘Metro’, 14 de Setembro de 2006.
SALVADO, Luis
‘Os Números do Cinema em Portugal 2005’, in ‘Premiere’, nº79, Negócios, Maio de 2006.
MENDES, José Vieira
‘O Fatalista, Diderot… à Portuguesa, segundo João Botelho’, in ‘Premiere’, nº74, Dezembro de 2005.

Sítios

Cinema2000: www.cinema2000.pt
ICAM-Instituto de Cinema Audiovisual e Multimédia: www.icam.pt

Leis

Lei nº42/2004 de 18 de Agosto, Aprovada a 17/08/06. Lei da Arte Cinematográfica e do Audiovisual.

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