MOURINHO DA CULTURA

Friday, March 06, 2009

I AM BACK WITH: STANLEY KUBRICK, O DEMIURGO



A 7 de Março comemora-se dez anos do desaparecimento de um dos maiores realizadores da história do cinema. Demiurgo, visionário, génio…é muito difícil ser parco em adjectivação quando nos referimos a Kubrick, talvez porque víssemos nele um outro deus da razão e um criador de mundos.


Stanley Kubrick deixou a sua marca não só no cinema como na ciência, na arte e no planeta, como um dedo em cera mole, ou uma cratera de um meteorito. Com a música de Strauss, o realizador pões naves, estações orbitais e astros nimbados de azul a valsar, em vez de oficiais vestidos de branco nos salões de Viena. Vai para mais de meio século que o cinema de Kubrick começou a rasgar horizontes já que os seus filmes, por muitas razões, tiveram sempre um estatuto especial na produção cinematográfica mundial. São unanimemente considerados verdadeiros acontecimentos, filmes de referência, a partir dos quais se assinalam rupturas, se medem espaços, se procuram desvendar mistérios ou se especulam sobre desvios naturais, políticos, sociais ou científicos que lentamente foram modificando a sociedade e o planeta. O estatuto especial dos seus filmes nasceu talvez com Dr. Estranhoamor (1964), um filme de muitos deslocamentos e desdobramentos, mas antes disso há que ter em conta a retroactividade crítica de Um Roubo no Hipódromo (1956), em relação ao filme negro, ensaiado com a contemporaneidade estrita de O Beijo Assassino (1955). Por outro lado, Nascido para Matar (1987) permite todas as interpretações sobre o cinema e a guerra e a atracção que exercem um sobre a outra como grande género cinematográfico e que Kubrick iniciou em Horizontes de Glória (1957). Shining (1980) apresentou-se como uma reacção ao cinema de terror convencional e como um trabalho radical sobre este género. Uma reacção contra o cinema fantástico norte-americano, então cada vez mais gore, sangrento e nulo numa época em que prosperava sem nexo e que hoje tem os resultados que conhecemos. Com Barry Lyndon (1975) Kubrick faz como que a recriação completa de um mundo e da cor reavaliando a natureza do filme histórico, do formato de ecrã e do som. A propósito de Napoleão, o seu nunca concretizado projecto histórico, Kubrick dizia, que até Barry Lyndon não existia nenhum filme histórico, referindo-se inclusive ao seu Spartacus (1960). Em Laranja Mecânica (1971) o realizador pareceu querer actualizar e encerrar de maneira definitiva a questão da violência, da sua representação e da sua ligação ao cinema, utilizando uma forma quase teatralizada, num registo dramático que se sobrepõe ao longo de todo o filme. 2001-Uma Odisseia no Espaço (1968) corta em dois a história do cinema de ficção-cientifica ou talvez muito mais do que isso. Há um antes e um depois de 2001. Kubrick exerceu sobre a Sétima Arte uma espécie de soberania totalitária, mesmo em Lolita (1962) um filme algo controlado para evitar problemas com a censura. Este hábito do quem manda sou eu, sempre lhe foi familiar até à morte aos 70 anos pouco tempo depois de um visionamento privado de Olhos Bem Fechados (1999). Isto depois de ter deixado os esboços de A.I. – Inteligência Artificial (2001), a apocalíptica visão de Nova Iorque que Steven Spielberg acabou por levar ao ecrã, não sem seguir à risca as instruções e as chaves do mestre.

A metáfora do meteorito de 2001-Uma Odisseia no Espaço, que representa mais uma etapa cumprida e mais um mistério a desvendar na história da humanidade, pode igualmente ser transposta para a obra de Kubrick. O realizador tornou cada um dos seus filmes num passo mais à frente na história do cinema, tanto do ponto de vista criativo como técnico. A sua evolução a nível artístico é visível filme a filme e muitas foram as vezes que contornou as possibilidades técnicas com sentido prático e imaginação.

O BEIJO ASSASSINO/THE KILLER’S KISS (1955): Uma sombra do cinema negro. Intérpretes: Frank Silvera, Jerry Jarret, Jamie Smith e Irene Kane. História: Um boxeur fracassado e uma bailarina tentam escapar-se para Seattle, mas vão ter que enfrentar um gangster sem escrúpulos, que acaba por sequestrar a rapariga. Veredicto: Depois de várias curtas sem grande importância e do pouco conhecido Fear and Desire (1953), Kubrick rodou a partir de um guião original (a única vez que o fez na sua carreira pois daí para a frente partiu sempre de adaptações literárias) este filme herdeiro do estilo e do visual do cinema negro da altura. O cineasta nunca se mostrou muito satisfeito com o resultado, num filme que participa como actriz a sua então mulher Ruth Sobota, e que inspirou The Strange Kiss (1983), de Matthew Chapman.

UM ROUBO NO HIPÓDROMO/THE KILLING (1956): Um thriller matemático. Intérpretes: Sterling Hayden, Coleen Gray, Vince Edwards, Jay C. Flippen. História: Um ex-presidiário reúne quatro homens para levar a cabo, e de forma milimétrica, um assalto a um escritório de apostas de um hipódromo. Só que as coisas não vão acontecer como o previsto. Veredicto: Repetir três vezes a mesma cena de pontos de vista diferentes foi talvez um dos logros mais radicais desta segunda incursão de Kubrick no cinema negro, que tenta assim corrigir e aperfeiçoar o estilo de O Beijo Assassino. A ideia foi buscá-la ao romance de Lionel White (cujos diálogos foram adaptados por outro grande talento do romance policial: Jim Thompson), que tinha já contornos quase simétricos e matemáticos, que colavam que nem uma luva com a linguagem e estilo do realizador.

HORIZONTES DE GLÓRIA/PATHS OF GLORY (1957): Cinema (anti) guerra. Intérpretes: Kirk Douglas, Ralph Meeker, Adolphe Menjou, George Macready. História: 1916 na frente francesa. Perante a negativa de um grupo de soldados em lançar um ataque suicida contra os alemães, um general monta um conselho de guerra para restabelecer a disciplina das tropas. Veredicto: Kirk Douglas financiou uma boa parte de esta obra radical antimilitarista e comprometida, realizada na contracorrente do cinema heróico nos EUA (em plena Guerra da Coreia) e das ideias anti-comunistas primárias da época. O próprio realizador escreveu o argumento para torná-lo mais comercial e apelativo aos espectadores. Mas Douglas segundo consta na sua autobiografia, impôs que se regressasse ao texto original. Foi a primeira vez que Kubrick rodou na Europa.

SPARTACUS (1960): O peplum intelectual. Intérpretes: Kirk Douglas, Laurence Olivier, Jean Simmons, Peter Ustinov, Tony Curtis. História: O escravo trácio Spartacus escapa-se e vai comandar um exército de escravos, contra Roma, refugiando-se nas montanhas e tentado sair da península Itálica por mar, mas acaba traído e derrotado. Veredicto: Kubrick substitui Anthony Mann logo no inicio da rodagem, que deixou uma sensação de que poderia ter ido mais longe. Não gostou do argumento do blacklisted Dalton Trumbo e além disso teve que cortar cerca de 12 homo eróticos minutos de uma cena entre Olivier e Curtis. No entanto, o estilo meticuloso do realizador está presente nos elegantes travellings, nos enquadramentos que obrigaram a alterar decors e nas cenas de batalha marcadas pela visão geométrica do realizador. Spartacus inaugurou a presença de Kubrick nos Oscars, ganhando quatro estatuetas, embora nenhuma directamente para o realizador.

LOLITA (1962): Um filme escaldante. Intérpretes: James Mason, Sue Lyon, Shelley Winters. Peter Sellers. História: O professor Humbert Humbert sente um enorme fascínio por Lolita, uma atraente adolescente, ao ponto de casar-se com a mãe para ficar mais próximo dela. Veredicto: Depois da triste experiência de Spartacus, Kubrick assegurou o controlo absoluto de Lolita, convencendo mesmo Nobokov a fazer a adaptação do seu polémico romance. De qualquer modo o erotismo pedófilo do romance foi sustentado pela actriz Sue Lyon, de 14 anos que efectivamente aparentava ser mais velha. No entanto o sexo (e por razões da censura) deixou de ser o centro principal do filme passando a intriga para o assassinato do personagem interpretado por Peter Sellers. O camaleónico trabalho do actor teria uma extraordinária continuidade em Dr. Estranhoamor, que partilha com Lolita um tom de humor negro e de universo surrealista.

DR. ESTRANHOAMOR/DR. STRANGELOVE (1964): A farsa política. Intérpretes: Peter Sellers, George C. Scott, Sterling Hayden. História: Um paranóico general norte-americano ordena um ataque nuclear contra posições soviéticas. Entretanto, no Pentágono tentam resolver o desaguisado. Veredicto: Esta comédia de pesadelo, como a definiu o próprio Kubrick foi rodada nos estúdios Shepperton em Londres (a partir daí a sua residência de trabalho) e embora tenha limado o inicial tom de comédia (com a guerra de tartes em pleno Pentágono), não descartou a possibilidade de dar ao filme uma carga erótica que não foi possível no óbvio Lolita. As armas e as suas fálicas conotações alcançam um ponto culminante quando Slim Pickens cavalga sobre uma enorme bomba. Kubrick recebeu a primeira nomeação para um Oscar.

2001-UMA ODISSEIA NO ESPAÇO/2001: A SPACE ODYSSEY (1968): A história do Homem. Intérpretes: Keir Dullea, Gary Lockwood, William Sylvester, Daniel Richter. História: Uma nave com astronautas viaja até Júpiter, mas vão ter que enfrentar o computador central e o aparecimento de uns misteriosos monolítos. Veredicto: Foi em primeiro lugar o filme que arrancou a ficção científica da série B, ao tratar de temas metafísicos, tão importantes como a relação do homem com a máquina (esse mítico HAL, cujo nome muitos dizem que se inspira na sigla IBM, mas retrocedendo uma letra no alfabeto), o enigma da origem do homem e da inteligência. É o grande exemplo de procura de um cinema total, levada ao extremo na elipse narrativa (o osso primitivo que se transforma em nave espacial), na coreografia visual, nos efeitos especiais, e no rigor que levou a recusar a banda sonora de Alex North, substituíndo-a antes e já depois da estreia do filme.

LARANJA MECÂNICA/A CLOCKWORK ORANGE (1971): A parábola futurista. Intérpretes: Malcom McDowell, Patrick Magee, Michael Bates, Warren Clark. História: Numa sociedade futura Alex De Large e os seus três amigos, dedicam-se ao vandalismo até que o sistema acaba por neutralizá-los. Veredicto: Com o seu estilo e interesses temáticos bem definidos Kubrick começa a planear os seus filmes como desafios formais e tecnológicos. Na banda sonora contou, por exemplo, com Walter Carlos, pioneiro dos sintetizadores. Além disso para criar o ambiente sofisticado e frio do filme, escolheu as melhores localizações com a ajuda de várias revistas de arquitectura e um inovador programa informático.É preciso não esquecer que estamos nos anos 70. O erotismo (os falos gigantes e assassinos) e a polémica (com acusações de fascista e violência gratuita inclusive) foram a marca de umas das suas obras mais pessoais.

BARRY LYNDON (1975): O filme de época. Intérpretes: Ryan O’Neal, Marisa Berenson, Patrick Magee, Hardy Kruger. História: Depois de ter passado pelo exército, ter desertado e feito fortuna, um plebeu chamado Barry conhece Lady Lyndon que vai introduzi-lo na sociedade e na aristocracia britânica. Veredicto: Foi mais um tour de force técnico ao utilizar dez sofisticadíssimas objectivas da Zeiss, utilizadas em missões da NASA, para poder rodar à luz de velas. Foram necessárias cerca de 1500 fotografias de localizações, detalhadas recriações inspiradas na pintura de época, e muitas discussões com o seu director artístico num filme que arrecadou quatro Oscars e novamente uma nomeação para Kubrick.

SHINING/THE SHINING (1980): Ensaio sobre o terror. Intérpretes: Jack Nicholson, Shelley Duvall, Danny Lloyd, Scatman Crothers. História: Jack Torrance chega com a sua familia a um hotel para encarregar-se da sua gerência. O seu antecessor no cargo tinha enlouquecido e morto a sua própria familia. Veredicto: O cineasta levou quase um ano só a preparar os cenários, construindo-os à escala real e a partir de modelos fotografados pelo seu director artístico. A longa cena aérea do início antecipa, com extrema perfeição técnica, a utilização em quase todo o filme da então pioneira steadicam. Esta nova e estável câmara unida ao corpo do operador permitiu a Kubrick planos, enquadramentos e movimentos até então inéditos. Foi o primeiro realizador a usar e a abusar desta tecnologia hoje praticamente usual em rodagem.

NASCIDO PARA MATAR/FULL METAL JACKET (1987): A descida aos infernos. Intérpretes: Matthew Modine, Adam Baldwin, Vincent D’Onofrio. História: Um grupo de recrutas vai iniciar a sua instrução militar. É o seu primeiro contacto com um envolvente de violência, que culmina com uma missão na guerra do Vietname. Veredicto: Kubrick reproduziu as ruas da cidade vietnamita de Hué numa central de gás abandonada nos arredores de Londres. Cerca de 200 palmeiras foram implantadas e mais de 100.000 plantas artificiais vindas de Hong Kong, criaram o ambiente tropical. Como na maioria dos seus filmes Kubrick manteve com os seus colaboradores uma relação que alternava entre a confiança e um controlo férreo de cada uma das actividades. O argumentista Michael Herr (ver Leituras), recorda que durante cerca de três meses e meio lhe enviou quase diariamente as páginas de argumento que ia escrevendo. Foi com esse material que Kubrick trabalhou sete meses seguidos e assentou as bases do que seria o argumento definitivo.

DE OLHOS BEM FECHADOS/EYES WIDE SHUT (1999): Um thriller erótico. Intérpretes: Nicole Kidman, Tom Cruise, Madison Eginton, Jack Sawiris. História: Inspirada na obra História de Um Sonho, de Arthur Schnitzler, escrita em 1926 sobre um psiquiatra casado que tem uma agitada vida sexual com alguns dos seus pacientes. Veredicto: Tom Cruise e Nicole Kidman já tinham contracenado em Dias de Tempestade e Horizontes Longínquos, mas nunca de um forma tão intensa como neste último filme de Kubrick. Estiveram praticamente um ano a trabalhar exclusivamente neste filme carregado de cenas sexuais explícitas que levantaram grande polémica nas televisões norte-americanas. O casal ao receber a notícia da morte de Kubrick poucos dias depois de terminada a versão final do filme declarou que estavam tão desgostosos como se fosse uma pessoa da sua família, dada a relação próxima que estabeleceram com o realizador.

DEZ LIÇÕES DE KUBRICK PARA ENTENDER O (SEU) CINEMA.

1. CINEASTA DO SUBCONSCIENTE: Na realidade o cinema opera a um nível muito mais próximo do que a música, a pintura ou a palavra impressa. Em filmes como 2001-Uma Odisseia no Espaço tentei criar uma experiência visual, algo que se sobreponha ao verbal e penetre directamente no subconsciente com um conteúdo emocional e filosófico. Justamente como acontece com a música.

2. PESQUISADOR DE HISTÓRIAS: Sinto um grande respeito por essa coisa única e milagrosa que é uma boa história. Antes de rodar uma cena tento que algo aconteça diante dos meus olhos e que mereça ser filmado. Então a forma de filmar já não é um problema: como filmar é simples; o que filmar isso sim é difícil.

3. AUTOCRÍTICO: Não gosto muito de Spartacus, e em relação a Lolita, sei muito bem que não consegui captar o quanto tem de mágico o livro de Nobokov, ou seja o seu estilo. Lolita é um dos exemplos mais significativos de que existem grandes livros que nem sempre dão filmes extraordinários.

4. CRÍTICO E CINÉFILO: Estou consciente de que não sei nada sobre fazer cinema, mas estou convencido de que não consigo fazer pior do que a maioria dos filmes que se vêem por aí. Os maus filmes dão-me a coragem necessária para fazer um novo filme. Na verdade vejo praticamente tudo o que estreia, excepto quando estou a rodar. Mas já não estou à espera de sair maravilhado quando saio do cinema, ou ser transportado a outro mundo, já só quero é divertir-me.

5. ERMITA: Gosto de estar à margem de toda a falsidade de Hollywood. Quando lá vivia toda a gente me perguntava se estava tudo bem, esperando que dissesse que tinha estado com alguém famoso ou se tinha discutido com alguma estrela.

6. SATISFEITO: Quem já teve o privilégio de dirigir um filme sabe o que é como tentar escrever o Guerra e Paz a subir uma montanha russa ao mesmo tempo. Mas quando terminamos não deve haver muitas alegrias na vida que se possam igualar a essa sensação.

7. IMPROVISADOR: É bom reflectir antes, mas nunca se pode explorar todas as possibilidades de uma cena, mesmo quando não se está num plateau. Não se consegue o máximo de uma cena sem corrigi-la no momento da rodagem.

8. AUTOSUFICIENTE: Além do divertimento que é rodar um plano pessoalmente, carregando eu próprio a câmara, dei conta que é virtualmente impossível explicar o que se quer de um plano com a câmara nas mãos do operador, por muito talento e sensibilidade que ele próprio tenha.

9. ESSENCIAL: Não me afecta o facto de perder material durante a montagem. Corto tudo até ao esqueleto. Na montagem queremos desfazer-nos daquilo que não é essencial.

10. GUIA PARA OS ACTORES: O trabalho do realizador consiste em fornecer as ideias ao actor, não dizer-lhe como deve representar ou os truques que deve utilizar quando está a actuar. Não há maneira de dirigir o actor se ele não tiver talento.

in PREMIERE nº7/2ªSérie/Março 09

1 Comments:

Blogger Jorge Lima Alves said...

Ainda bem que voltaste! Fico contente. Eu também ando por aí, na blogosfera... Abraço

3:03 AM  

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