MOURINHO DA CULTURA

Tuesday, November 14, 2006

MODELOS DE TELEVISÃO: PÚBLICA VS. PRIVADA





Por José Vieira Mendes


‘A televisão não é boa nem má depende do uso que se faça dela’.

Marcelo Caetano

O desenvolvimento da televisão no mundo foi determinado pela dicotomia entre um serviço público e, em oposição, por uma actividade comercial e privada. No entanto, os poderes públicos tomaram para si alguma responsabilidade neste desenvolvimento, considerando que a televisão, devido às suas características muito particulares, deveria ter uma regulamentação distinta em relação aos outros meios de comunicação social. Foi nos anos 40 e 50 que em quase toda a Europa ocidental se constituiu um modelo específico de televisão estatal de serviço público, caracterizado por uns objectivos pedagógicos da oferta de programas e conteúdos formativos aos cidadãos. Em primeira instância, um serviço público televisivo significa igualmente que o Estado é o dono e o detentor do espectro de radiofrequências, por donde são difundidas as ondas hertzianas transmissoras dos sinais e conteúdos de televisão, e como tal, é ele quem concede as frequências e as licenças de emissão aos potenciais operadores privados. Isto é, cabe ao Estado, através de uma legislação pertinente, determinar quem e em que condições podem esses operadores exercer a sua actividade, estipulando parâmetros em relação aos conteúdos mínimos de determinados géneros na programação, ou quotas das mais diversas e outras obrigações a que estão sujeitos esses mesmos licenciados para exercer a actividade televisiva.
A televisão, quer seja ela de natureza pública ou privada, é composta por uma série de objectivos de natureza distinta, que abarcam desde a criatividade dos ‘autores’ para conceberem um determinado conteúdo, até à gestão dos complexos dispositivos tecnológicos essenciais para a emissão e recepção dos sinais televisivos. Neste contexto é possível distinguir basicamente os seguintes objectivos:

* A produção de conteúdos audiovisuais, os quais podem ou não ser concebidos pelo operador televisivo;
* A emissão desses conteúdos a partir da elaboração de uma grelha de programação da responsabilidade exclusiva da estação emissora;
* A difusão do sinal numa determinada área geográfica, da responsabilidade da emissora ou de outras empresas associadas à sua actividade.

Assim, o serviço público de televisão tanto pode referir-se às três actividades mencionadas, tal como aconteceu no passado em muitos países europeus, ou então centrar-se apenas em criar condições para a emissão do sinal televisivo.

Poderemos então fazer uma diferenciação entre serviço público e televisão pública. Apesar destes conceitos serem muitas vezes confundidos, o que é certo é que em muitos países, principalmente os europeus, toda a actividade televisiva é considerada um serviço público; desta forma, uma boa parte da legislação é aplicável igualmente a todas as estações de televisão, independentemente da sua figura jurídica. Por exemplo, o tempo máximo de emissão de anúncios publicitários, as limitações de horário para os anúncios de bebidas alcoólicas, a impossibilidade de emitir certos programas mais violentos antes das 22 horas. No entanto, nem todas as estações de televisão são de titularidade pública, o que pressupõe que elas próprias mantenham, além de uma certa independência dos poderes públicos, também compromissos adicionais estabelecidos com a sociedade em que estão inseridos, e tendo elas próprias os seus órgãos de controlo e tutela empresarial.

Modelos fundadores

São dois os sistemas tradicionais de funcionamento do meio televisivo que se desenvolveram no pós-II Guerra Mundial: o modelo europeu, que se desenvolveu a partir da concepção da televisão como um serviço público gerido pelo Estado, primeiro em situação de monopólio e de um só canal, e cujo “bom” funcionamento era essencial para o conjunto da sociedade. A importância dada à televisão pública está registada nas palavras do presidente Charles De Gaulle, que afirmava que a televisão era a voz da França, e a televisão pública o porta-voz oficial e unificado da nação inteira. Pelo contrário, o modelo norte-americano, comercial e privado, foi aquele em que o Estado não geria nem produzia os conteúdos: um distribuidor ao domicílio de um produto audiovisual.

O modelo europeu

Apesar das mais diversas experiências nacionais, nos países europeus existem certos pontos em comum no desenvolvimento dos seus sistemas de televisão. Na grande maioria dos casos, quer por razões económicas quer políticas, o Estado teve no desenvolvimento das estações de televisão uma forte intervenção, desde a produção dos conteúdos à gestão dos recursos, quer de uma forma directa ou delegada.
No início, partindo da base do limitado espectro de radiofrequências disponíveis pelo qual circulavam os sinais de televisão, e da escassez de um mercado de consumo capaz de garantir a venda razoável de televisores, e garantir a rentabilidade dos investimentos publicitários, as Administrações centrais dos Estados preocuparam-se em gerir um ou dois canais de televisão de cobertura nacional financiados através de um imposto específico chamado canon.
Na base destes sistemas estava a ideia de que a televisão é um excelente instrumento para educar, informar e entreter os cidadãos. A televisão era então vista como um espaço público novo e vital da democracia, que garantia o direito à liberdade de expressão e, ao mesmo tempo, estava ao serviço do pluralismo cívico. A famosa trilogia de funções e objectivos — educar, informar e entreter, por essa ordem — foi quase sempre compatível com um controlo político efectivo dos Governos no poder, que exerciam a sua visão paternalista em combinação com uma perspectiva elitista da cultura, baseada nos padrões da classe média-alta, sobretudo no caso da britânica BBC-British Broadcasting Corporation, que se tornou num símbolo da cultura nacional. Do conjunto dos sistemas televisivos surgidos na Europa, foi efectivamente a BBC (e ainda hoje continua a ser), a estação com um melhor padrão de um verdadeiro serviço público. A estação mantém-se como uma espécie de estandarte da qualidade de conteúdos, da realização e da independência informativa, visto como modelo a seguir em quase todo o mundo.

O modelo norte-americano

Este modelo foi-se desenvolvendo ao longo de várias décadas do século XX nos EUA, e baseia-se na actividade de empresas de televisão privadas e comerciais - denominadas networks - que foram, à imagem das redes radiofónicas, estabelecendo cadeias emissoras espalhadas pelo território e estados norte-americanos. Mesmo neste contexto, o Estado reservou um certo controlo do funcionamento do sistema televisivo, criando nos anos 50, a famosa FCC (Federal Communications Commission). Foi exactamente nessa década que a FCC procurou estabelecer as regras-chave para uma ordenação do sistema audiovisual naquele país: impôs um limite à quantidade de estações ligadas em cadeia (não mais de sete), reduziu-lhes a percentagens mínimas a produção de conteúdos próprios e proibiu ainda que os grandes estúdios cinematográficos de Hollywood se tornassem os proprietários dos canais de televisão.
O sistema desenvolveu-se com a presença de três grandes networks nacionais que ainda hoje se mantêm no enorme espectro audiovisual nos EUA: NBC, CBS e ABC. As cadeias estavam organizadas em redor de uma estação emissora-mãe unida a uma ampla rede de emissoras associadas, que emitiam entre 80 a 100 horas semanais de programação gerida pela estação central, completando as suas emissões com programação local. Fora do sistema privado nasceu ainda em 1969 a PBS-Public Broadcasting System, uma empresa de televisão não comercial, que emergiu basicamente da sociedade civil, financiada através de um misto de dinheiros públicos e financiamentos privados (fundações, associações cívicas, universidades e particulares.)

A televisão pública: fontes de financiamento

A televisão pública, principalmente na Europa Ocidental, é financiada basicamente através de quatro formas:

1. O pagamento de um imposto directo por parte dos proprietários dos televisores, denominado canon;
2. Os subsídios públicos provenientes dos respectivos OGE;
3. As receitas publicitárias provenientes da venda de espaços;
4. A venda de programas nos mercados internacionais, em quantidades significativas, isto mais no caso britânico, e residual em outros países.

O financiamento das estações públicas através do canon esteve efectivamente na base do modelo europeu de televisão. Estas receitas conseguiram dar às estações a independência necessária para não se sujeitarem à pressão dos anunciantes ao nível dos conteúdos, como aconteceu nos EUA, ao mesmo tempo que comprometia as emissoras, numa ‘perspectiva generalista’, a satisfazer, mediante uma programação adequada às várias horas do dia, as necessidades de todos os públicos sem ter em conta a ‘ditadura das audiências’.
O canon era um imposto que estava ligado ao facto de se possuir ou não um televisor; habitualmente pagava-se com uma periodicidade anual, tal como acontece com outro tipo de impostos conceptualmente similares, como por exemplo o imposto de circulação automóvel.
As receitas que as televisões públicas obtinham do canon foram sendo cada vez menores nas últimas décadas, em primeiro lugar devido à impossibilidade de manter um controlo sobre as vendas de televisores. Efectivamente, as receitas provenientes da publicidade vieram algo tardias, começando timidamente nos anos 70, e mesmo assim controladas de forma severa pelas distintas administrações. Só mesmo nos anos 80 e 90, com o advento da televisão comercial e privada, a publicidade tornou-se também uma fonte de receitas fundamental para muitas cadeias públicas. Analisando o panorama actual das televisões públicas na União Europeia, encontramos várias formas de financiamento:

1. Um financiamento basicamente feito através de um canon televisivo: Grã-Bretanha, Alemanha e países nórdicos.
2. Um financiamento misto que compreende tanto as receitas provenientes do canon como os da publicidade: Irlanda, Países Baixos e Áustria;
3. Um financiamento público, canon e publicidade: França, Itália e Bélgica;
4. Um financiamento maior proveniente da publicidade e marginalmente um financiamento público (subsídios ligados a concessões ou contratos programas): Portugal e Espanha.

A televisão privada: fonte de financiamento

A televisão como negócio inclui, em princípio dois grandes sectores de actividade: por um lado a produção e compra-venda de conteúdos, e por outro, a venda de tempo de difusão a anunciantes publicitários. A televisão privada, baseada no modelo de funcionamento das estações de rádio comerciais, teve o seu impacto nos EUA, mas foi um modelo que se estendeu a outras regiões, como por exemplo a alguns países da América Latina (caso do Brasil).
Em relação à venda de programas, são poucos os países ou produtoras que têm capacidade para ultrapassar as fronteiras nacionais. Mas há, pelo menos, o caso dos EUA, e em menor grau as estações privadas (e públicas) da Grã-Bretanha, que o conseguem com algum êxito. Para além desses, alguns casos específicos de formatos como a “anime” japonesa ou as telenovelas brasileiras e sul-americanas, que conseguem valores significativos na exportação de conteúdos. Recentemente, a produtora holandesa Endemol tem sido um caso raro de sucesso de mercado, inclusivamente vendendo alguns formatos nos EUA (Big Brother) e praticamente em toda a Europa. No entanto, há alguns anos que investigadores no âmbito dos meios de comunicação de massas defendem que o verdadeiro negócio das empresas de televisão é vender audiências aos anunciantes publicitários. Daí que os programadores de televisão tenham que ser cada vez mais competentes no momento de captar a atenção de homens e mulheres, ricos ou pobres, de adultos ou dos mais pequenos... Por seu lado, os anunciantes conceberam a televisão como um meio privilegiado para chegar à intimidade do lar de cada família e para lhes oferecer as suas marcas e produtos. Deste esquema deriva a importância suprema de procurar a rentabilidade máxima das audiências no momento de conceber uma grelha de programação. O rating, a unidade de medição de audiências televisivas, é um indicador de referência central para a definição das tabelas publicitárias, ao assinalar um valor (custo/contacto) ao número de pessoas que vêem um determinado programa e, consequentemente, são atingidos pela publicidade inserida nesse mesmo programa. Assim, em geral, anunciar nos programas mais vistos é mais caro, pois pressupõe para o anunciante uma audiência mais elevada para os seus anúncios comerciais. No entanto, a proliferação de cadeias de televisão com as mais variadas ofertas temáticas torna cada dia mais discutível esta questão. É cada mais complicado conseguir êxitos históricos de audiências, já que a diversidade de opções audiovisuais deu lugar a uma cada vez maior especialização no momento de investigar os chamados perfis de audiência das cadeias de televisão e dos programas. Para publicitar já não é tão decisivo o maior rating, mas também o perfil dos telespectadores (idades, sexo, nível educativo, nível sócio-económico, “hobbies”, etc.) mais adequado ao produto a anunciar. Por último, cabe ainda assinalar que se é certo que os anunciantes e as suas mensagens publicitárias incidem nos conteúdos oferecidos pelas televisões, também já se verifica o fenómeno contrário: os efeitos sobre novas formas de negócio que podem chegar a estar no conceito de determinados programas, produzindo espectaculares entradas de dinheiro através das chamadas telefónicas (fixas ou móveis) e dos SMS utilizados pelo público para votar, interagir com o programa ou com os seus participantes.


BIBLIOGRAFIA:

LIVROS:

CAZENEUVE, Jean (direcção de)
Guia Alfabético das Comunicações de Massas, Lexis, Edições 70, Lisboa, 1976, 300 pág.
BUSTAMANTE, Enrique
La Television Económica, Gedisa Editorial, 2ª edição, Barcelona, 2004, 220 pág.
CÁDIMA, Francisco Rui
O Fenómeno Televisivo, Circulo dos Leitores, Lisboa, 1995, 230 pág.
VASCONCELOS, António-Pedro
Serviço Público Interesses Privados- O Que Está Em Causa na Polémica da RTP, Oficina do Livro, Lisboa, 260 pág.
LOPES, João
Teleditadura-Diário de Um Espectador, Quetzal Editores, Lisboa, 1995, 317 pág.
MCLUHAN, Marshall
Os Meios de Comunicação Como Extensões do Homem, Cultrix, São Paulo, 1979, 407 pág.

REVISTAS:

Comunicação e Linguagens Nº23: O Que é o Cinema?, Edições Cosmos, Lisboa, 1996, 260 pág.
Comunicação e Linguagens Nº9: Televisão-Estratégias, Discursos e Tecnologias, Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens, Lisboa, 1989, 240 pág.
Comunicação e Linguagens Nº8: Jornalismos, Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens Lisboa, 1988, 223 pág.

CINEMA PORTUGUÊS: ARTE OU INDÚSTRIA?






Por José Vieira MENDES

‘Tudo o que de bem ou mal nos acontece cá em baixo, está escrito lá em cima.’

Tiago, em “O Fatalista” (2005), de João Botelho

O cinema português sofre de um problema, que não lhe é exclusivo, mas antes uma questão que abrange as cinematografias da periferia europeia e mesmo do próprio cinema europeu em geral, que continua a viver ainda em parte no dilema entre uma produção de cariz artístico — tradicionalmente subsidiada pelo Estado —, o chamado cinema de autor, e uma produção comercial que aparentemente não consegue encontrar o seu espaço no plano dos espectadores. No entanto, o cinema português padece de algumas particularidades muito próprias, que dizem respeito, em primeiro lugar, com a nossa dimensão, e depois numa certa mentalidade que abrange outros sectores da vida cultural.

Altos e baixos
É verdade que a cinematografia portuguesa historicamente tem tido altos e baixos no que diz respeito aos níveis de produção e atracção de público(s). Houve um período de grande apogeu, nas décadas de 30 e 40 com o Estado Novo, na tentativa de apoiar uma pequena indústria que o servisse, e que deu origem primeiro a um grande esforço criador — “Nazaré“ e “Maria do Mar“ (1930), de Leitão de Barros, “Aniki-Bóbó“ (1942), de Manuel de Oliveira —, e depois a alguns sucessos da comédia popular: “A Canção de Lisboa“ (1933), de Cottinelli Telmo, “O Pai Tirano“ (1941), de António Lopes Ribeiro.
Os anos 50, e até 1962, é um período de decadência, podemos lembrar apenas “Rapsódia Portuguesa“ (1958), de João Mendes, sendo 1955 o ano zero — em que não se produziu qualquer filme português. As décadas de 60 e 70 viram nascer o movimento do chamado ‘cinema novo português’, influenciado pela ‘política de autor’ vinda de França. Tratava-se de um cinema fortemente apoiado em primeiro lugar pela Fundação Calouste Gulbenkian e depois pelo Estado, que de alguma forma criou um ‘outro cinema’, mas que não fez grandes concessões em relação aos espectadores: “Verdes Anos“ (1963), de Paulo Rocha, “Belarmino“ (1965), de Fernando Lopes, “O Cerco“ (1970), de António da Cunha Teles. Esta ideia de ‘cinema de autor’ marca, de alguma forma ainda a cinematografia portuguesa de hoje, com uma ‘fractura’ corrente entre dois grupos de realizadores que formam duas distintas associações do sector, sendo que uns defendem mais o cinema como indústria, e outros como arte. A esse propósito, assumindo uma destas posições radicais, comentáva-nos o realizador João Botelho, aquando da estreia de “O Fatalista“, o seu último filme na Mostra de Veneza 2005: O cinema nunca foi uma arte pura (…). O cinema sempre foi uma relação entre um negócio e uma arte. Em Portugal (…) ainda temos a capacidade de fazer com que o cinema seja uma arte cinematográfica. Curiosamente, e apesar de tudo, as décadas de 80 e 90 viram nascer alguns casos de relativos sucessos de público: “O Lugar do Morto“, de António-Pedro Vasconcelos (1982/84) e “Adão e Eva“ (1995) e “Tentação“ (1997), de Joaquim Leitão; e a consagração da crítica e de prémios internacionais: “Recordações da Casa Amarela“ (1989), de João César Monteiro, ou “Vale Abraão“ (1993), de Manoel de Oliveira, acabando por haver um certo equilíbrio e compromisso entre a arte e a indústria.

2005, um ano de excepção
Infelizmente, nos últimos anos temos vivido uma situação que não é a mais famosa em termos de espectadores, com uma das taxas de afluência mais baixas da Europa em relação ao cinema nacional. Tendo em conta a situação, 2005 acabou por não ser um ano assim tão mau para o cinema português, com cerca de onze estreias de filmes portugueses nas salas e um número razoável de espectadores como não havia há alguns anos (cerca de 404.136, segundo os dados do ICAM-Instituto de Cinema Audiovisual e Multimédia). É um facto que foi quase só à custa de “O Crime do Padre Amaro“, de Carlos Coelho da Silva (317.234), já que houve outros filmes que tiveram investimentos de produção e promoção consideráveis, como “Manô“, de George Felner (1443), “Odete“, de João Pedro Rodrigues (7.019), ou “Alice“, de Marco Martins (33.489), este último em nossa opinião um dos melhores filmes portugueses dos últimos anos, que afinal não corresponderam às expectativas dos agentes envolvidos (autores, produtores, distribuidores, exibidores e do próprio Estado e televisões como principais financiadores).

A questão dos espectadores
O que explica então que filmes recentes, que até tiveram valores de investimento, quer em termos de produção, quer em termos de promoção -— outra das grandes insuficiências do cinema português, que não consegue fazer passar a sua mensagem promocional ou por vezes os próprios agentes promovem-no mal -— interessantes, como “Coisa Ruim“ (2006), de Tiago Guedes e Frederico Serra, “98 Octanas“ (2006), de Fernando Lopes, os referidos “Alice“ e “Odete, não conseguem por vezes encontrar a atracção junto do público necessária ao seu investimento artístico e financeiro? Outros, pelo contrário, como por exemplo a recente estreia de “Filme da Treta“, de José Sacramento (para já 50.000 espectadores no primeiro fim-de-semana de estreia) ou “O Crime do Padre Amaro”, de Carlos Coelho da Silva, conseguem números de bilheteira muito razoáveis, para o panorama generalizado.
Se olharmos do ponto de vista daquilo que é a recepção dos filmes, ou seja, quantas pessoas é que vêem e o que é que vêem, as coisas não são brilhantes. Mas também não são tão más como se pensa, se tivermos em conta, por exemplo, algumas estreias de filmes independentes americanos ou europeus (isto é, que não trazem a carga promocional de um ‘blockbuster’), que têm números muito semelhantes aos dos filmes portugueses. “Colisão”, de Paul Higgis, que ganhou o Oscar de Melhor Filme 2005, não chegou, nem de longe nem de perto, ao Top 20 dos mais visto (72.181) do ano. Mesmo assim, em 2005, em termos de espectadores, estamos com números inferiores à média. Recuperámos um pouco no 1.º semestre deste ano, curiosamente assistindo, e contra a corrente mundial, a um acréscimo do número generalizado de espectadores nas salas (cerca de 350 mil espectadores a mais em relação a 2005). Isto também se reflectiu um pouco no contexto geral nas escassas estreias de filmes portugueses, cerca de nove, sendo três delas documentários. À frente da lista dos mais vistos está “Coisa Ruim”, com quase 30 mil espectadores. Existem sempre, no entanto, os mais pessimistas como, por exemplo Miguel Somsen, que na ‘Modalidade Amadora’ (in Metro, 14/09/06) começa por dizer: O cinema português devia ser extinto. O crítico, depois de analisar os números do cinema português no 1º semestre de 2006, chega à seguinte conclusão: É preciso perceber se o cinema português é um negócio ou não. Se é um negócio que rende dinheiro ao Estado ou não. E se o Estado está disposto a financiar um negócio que não rende (…). Se não está, façam-se as contas, fechem-se os contratos, paguem-se as indemnizações, e transfiram-se os financiamentos para o teatro(…). O cinema português é uma modalidade amadora: se não funciona, se não tem público, se não tem qualidade, não pode ter desculpa- — deveria ser extinta.


A questão da diversidade
De facto, é um tanto exagerada esta posição, mas se olharmos à qualidade da produção nacional e à sua diversidade, as coisas também não são famosas. Tendencialmente, temos só um ou dois géneros de cinema (drama ou comédia) produzidos em Portugal nos últimos anos, o que não é de todo apelativo para conquistar novos públicos. Se encararmos outras questões para além do problema do financiamento, temos aí uma outra realidade, que, essa sim, é importante: o número de pessoas a trabalhar na ‘indústria’ directa ou indirectamente, ou em actividades relacionadas com o audiovisual. Neste aspecto, temos tido um crescimento exponencial nos últimos anos. Se olharmos à capacidade dos filmes portugueses aparecerem no circuito e nos festivais internacionais, também existiram alguns casos interessantes nos últimos anos. Além do incontornável Manoel de Oliveira, temos ainda a figura do realizador Pedro Costa e dos seus últimos filmes, “No Quarto da Vanda”, “Onde Jaz o Teu Sorriso?” e “Juventude em Marcha”, que transmitem uma imagem de uma certa originalidade ao cinema português. Começou também a surgir um grupo de jovens realizadores interessados em fazer filmes que agradem ao público, apresentando primeiras obras com relativo sucesso, ainda que já tivessem alguma experiência, como é o caso de Marco Martins (“Alice”), que trabalha essencialmente na publicidade, e mais um ou dois, como a dupla Tiago Guedes/Frederico Serra, que fizeram algumas curtas-metragens e televisão, e que com “Coisa Ruim” tentaram fazer um filme dentro do género fantástico, e João Pedro Rodrigues (um cinema de estética ‘gay’), que com “Odete” apresentou a sua segunda obra.

Afinal, arte ou indústria?
Tudo leva a crer que estamos num ponto de viragem em termos de produção cinematográfica. A nova Lei da Arte Cinematográfica e do Audiovisual (Lei n.º 42/2004), aprovada recentemente, pode vir a ajudar a modificar a situação, principalmente com a criação de um Fundo Destinado ao Fomento e Desenvolvimento do Cinema e do Audiovisual. Esta vai implicar, para além do Estado, um maior empenhamento dos privados e também algumas concessões da parte dos artistas e produtores envolvidos. Este ano, existiu claramente já um investimento das estações de televisão, principalmente das privadas, e de outras entidades, como o sector de distribuição, na produção cinematográfica. Já a tivemos o ano passado, com “O Crime do Padre Amaro”, que fez praticamente o ano do cinema português, e que é, na realidade, uma produção televisiva da SIC, e um filme totalmente suportado por dinheiro da estação. Aliás, o “Filme da Treta” teve como parceiro a distribuidora LNK Audiovisuais. Este ano, ou no início do ano que vem, ainda vão estrear mais filmes nesta situação, sem financiamento do Estado, o que, à partida, é um indicador de que poderá vir a crescer uma actividade cinematográfica fora do tradicional meio de financiamento assegurado principalmente pelo Estado.
Hoje em dia, com o digital e os meios técnicos disponíveis a qualquer um, é sem dúvida mais fácil e mais barato produzir um filme. Falar em indústria é que algo mais complicado. A actividade industrial implica uma produção em massa e em larga escala. Pelo menos, se utilizarmos a expressão ‘indústria’ apenas para referir a existência de um sector de actividade, ou seja, de um negócio rentável até certo ponto – pelo menos numa razoável afluência de espectadores. Isso até se implementaria facilmente com um ‘marketing’ mais agressivo e uma maior diversidade de géneros no cinema português. Agora, se entendermos como indústria a produção maciça, em larga escala, de obras cinematográficas, temos que ter consciência da dimensão do nosso mercado, e Portugal não tem condições para sustentar ou ser a base de uma indústria cinematográfica. Seria a ‘grande ilusão’. Falando de uma indústria, teríamos que pensar em produzir para quem? Isto é, produzir para os três milhões de pessoas em Portugal que vêem cinema, das quais apenas duzentas mil potencialmente veriam cinema português?
Resumindo, é impossível rentabilizar uma obra cinematográfica a partir dos seus custos para um número tão limitado de potenciais espectadores. Podemos antes pensar numa produção em escala, com ambições internacionais, valorizando por exemplo os países de expressão portuguesa, mesmo recordando que filmes portugueses têm que ser projectados com legendagem no Brasil, dada a dificuldade que os brasileiros têm em nos entender. No espaço europeu, não teremos qualquer hipótese de competir, a não ser com uma cinematografia alternativa — haverá sempre a barreira linguística — , a tal opção de cariz artístico, de cinema de autor, talvez a única em que temos algum espaço de manobra e que nos tem dado algum prestígio internacional.
É preciso produzir cada vez mais filmes, pois quanto mais se produzirem, tendenciamente melhores filmes se farão. Neste aspecto, há ainda que ter em consideração uma certa escassez de profissionais de produção no mercado português, que gira quase sempre à volta da figura de Paulo Branco, o maior produtor nacional, que tem tido, e segundo a velha máxima de que ‘em terra de cegos quem tem olho é rei’, quase todo monopólio da produção, distribuição e exibição nacional e internacional dos filmes portugueses.




Bibliografia

Livros

ESCUDERO, Garcia
Vamos Falar de Cinema, Livros RTP, Biblioteca Básica Verbo, Editoral Verbo, Lisboa, 1971.
ROSENFELD, Anatol
Cinema: Arte & Indústria, Colecção Debates, Editora Perspectiva, São Paulo, 2002.
CRETON, Laurent
Cinéma et marché, Armand Colin, Collection U, série ‘Cinéma et Audiovisuel’, Paris, 1997.
RAMOS, Jorge Leitão
Dicionário do Cinema Português 1962-1988, Caminho, Lisboa, 1989.
RAMOS, Jorge Leitão
Dicionário do Cinema Português 1989-2003, Caminho, Lisboa, 2005.

Revistas e artigos de jornal

MATEUS, José J.
‘Cinemas já recuperaram 350 mil espectadores em 2006’, in ‘Público’, 18 de Agosto de 2006.
SOMSEN, Miguel
´Modalidade Amadora’, Ponto de Vista, in ‘Metro’, 14 de Setembro de 2006.
SALVADO, Luis
‘Os Números do Cinema em Portugal 2005’, in ‘Premiere’, nº79, Negócios, Maio de 2006.
MENDES, José Vieira
‘O Fatalista, Diderot… à Portuguesa, segundo João Botelho’, in ‘Premiere’, nº74, Dezembro de 2005.

Sítios

Cinema2000: www.cinema2000.pt
ICAM-Instituto de Cinema Audiovisual e Multimédia: www.icam.pt

Leis

Lei nº42/2004 de 18 de Agosto, Aprovada a 17/08/06. Lei da Arte Cinematográfica e do Audiovisual.

Web Pages referring to this page
Link to this page and get a link back!