MOURINHO DA CULTURA

Thursday, May 06, 2010

A CATARSE DA GUERRA


‘LIBANO’ DE SAMUEL MOZ
TRATA-SE DO FILME VENCEDOR DO LEÃO DE OURO DO ÚLTIMO FESTIVAL DE VENEZA. É UMA PRIMEIRA OBRA DO REALIZADOR ISRAELITA SAMUEL MOZ, FEITO A PARTIR DAS SUAS MEMÓRIAS, QUASE VINTE CINCO ANOS DEPOIS DE TER SIDO SOLDADO (TRIPULANTE DE UM BLINDADO) NA GUERRA DO LÍBANO NO VERÃO DE 1982. CHAMA-SE ‘LÍBANO’, PORQUE SE REFERE NÃO APENAS A UM PAÍS OU A UMA GUERRA, MAS A UM RETRATO DE UMA GERAÇÃO (‘GERAÇÃO LÍBANO’ TEM AGORA PERTO DE 50 ANOS, TINHA 20 NA ALTURA) MARCADA POR UM DOS MAIS VIOLENTOS CONFLITOS ISRAEL-ÁRABES, QUE CULMINOU NOS MASSACRES DE SABRA E CHATILA. IGUALMENTE DA FABULOSA ANIMAÇÃO DOCUMENTAL, ‘VALSA COM BASHIR’, REALIZADA POR ARI FOLMAN QUE ESTREOU HÁ DOIS ANOS. AMBOS SÃO DOIS SINCEROS, CORAJOSOS E CATÁRTICOS MANIFESTOS ANTI-GUERRA, PRODUZIDOS PELO CINEMA ISRAELITA.
‘LÍBANO’ É UM ACTO DE CONTRIÇÃO E DE PERDÃO DO REALIZADOR A SI PRÓPRIO POR UMA SITUAÇÃO DE GUERRA QUE O TEM MARCADO PELA VIDA INTEIRA E QUE SÓ COM ESTE FILME PARECE TER CONSEGUIDO LIBERTAR-SE DE UMA FORMA CATÁRTICA. PASSA-SE PRATICAMENTE (CERCA DE 1H30) DENTRO DE UM CARRO DE COMBATE OU COM O OLHAR PARA O EXTERIOR VISTO APENAS ATRAVÉS DO PERISCÓPIO DO ATIRADOR. E TUDO COMEÇA NO DIA 6 DE JUNHO DE 1982 (QUANDO POR ENGANO O APONTADOR (O PRÓPRIO REALIZADOR) ALVEJA POR ENGANO UM PARAQUEDISTA ISRAELITA. DEPOIS TODO O CENÁRIO É REALISTA, CLAUSTROFÓBICO E SIMBÓLICO DO INTERIOR DO VEÍCULO DE COMBATE ONDE INTERAGEM A TRIPULAÇÃO DE QUATRO JOVENS SOLDADOS DE 20 ANOS MAIS ACOSSADOS PELO MEDO DE MORRER DO QUE PELA VONTADE OU MOTIVAÇÃO PARA COMBATER.
O BLINDADO MOVIMENTA-SE NUMA CIDADE-FANTASMA JÁ BOMBARDEADA PELOS ISRAELITAS MAS ONDE PARECE SER IMINENTE A QUALQUER ALTURA SEREM ALVEJADOS POR UM MÍSSIL ANTI-TANQUE. É UM ESPANTOSO E ADMIRÁVEL EXERCÍCIO DE CINEMA FEITA POR UMA PEQUENA EQUIPA JÁ QUE OS INTERIORES SÃO TODOS FEITOS EM ESTÚDIO NUMA RÉPLICA PERFEITA (EM CONCHA) DE UM CARRO DE COMBATE DA SUA PERFORMANCE (COM TODOS OS EFEITOS DA GUERRA, EXPLOSÕES, TIROTEIO, ETC) REGISTADO QUASE EM CIMA DOS ACTORES. OS ACTORES ISRAELITAS SÃO FABULOSOS E DESCONHECIDOS, QUE O REALIZADOR DIRIGE PRIMOROSAMENTE. ATÉ PORQUE O CENÁRIO NÃO PERMITIA MAIS GENTE. O ESPECTADOR VAI SENTIR QUASE NA PELE ESSE MEDO E TENSÃO E UM CHEIRO A CARNE HUMANA QUEIMADA, TAL COMO O REALIZADOR O SENTIU NA ALTURA. PELOS OLHOS DESSES ACTORES UM DELES QUE INTERPRETA A PERSONAGEM DE SCHMULIK (O DIMINUTIVO DE SAMUEL, O REALIZADOR) QUE VAMOS VER COMO UMA SIMPLES MISSÃO DE RECONHECIMENTO SE VAI TRANSFORMAR NUM TREMENDO PESADELO E NUM ARMADILHA QUASE MORTA, SEMPRE COM UM INQUIETANTE REALISMO. OS JOVENS SOLDADOS NÃO SÃO HERÓIS. SÃO SERES HUMANOS FRÁGEIS, INOCENTES, FORÇADOS E SEM GRANDE FORMAÇÃO MILITAR, PARA UM CONFLITO EM QUE PARECEM NÃO ACREDITAR, NEM SABER MUITO BEM O QUE ESTÃO LÁ A FAZER.
ACABAM VITIMIZADOS PELO MEDO E PELA LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA: MATAR PARA NÃO MORRER.
‘LÍBANO’ É UM GRANDE FILME DE GUERRA AO NÍVEL DE ‘APOCALIPSE NOW’ OU DE ‘ESTADO DE GUERRA’. NOS ÚLTIMOS OSCARES FICOU DE FORA PORQUE NÃO ESTREOU A TEMPO NOS EUA. UM FILME A TER EM CONTA NO PRÓXIMO ANO ATÉ PELA FORMA COMO TEM SIDO CONSENSUAL NA CRÍTICA. UMA HISTÓRIA INQUIETANTE QUE PODERIA SER NA SUA ESSÊNCIA, COMUM A DE MUITOS SOLDADOS PORTUGUESES QUE COMBATERAM NO ULTRAMAR, E QUE TALVEZ AINDA NÃO ESTEJA CONTADA NO CINEMA PORTUGUÊS DESTA FORMA TÃO PERFEITA E REALISTA.

O ‘ESTADO’ DO CINEMA PORTUGUÊS



O Manifesto pelo Cinema Português (do qual fui subscritor) é mais uma resposta ao desconforto e ao panorama negativo da crise generalizada dos investimentos e mecanismos de apoio do Estado à Cultura. Produziram-se vários filmes portugueses nos últimos tempos, aliás, a maioria deles está nas selecções do IndieLisboa 2010. Um ano depois da Palma de Ouro de João Salaviza, apenas Manoel de Oliveira, (um dos mais rentáveis realizadores portugueses) com ‘O Estranho Caso de Angélica’, vai estar no Festival de Cannes, em Maio próximo. Não esquecer que Pedro Costa teve direito a edição de luxo dos seus filmes em DVD na famosa Criterion. No entanto, a Ministra da Cultura anunciou há dias, na sessão de abertura do IndieLisboa, uma revogação da Lei do Cinema para breve.
Já na anterior legislatura se perdeu uma oportunidade de alterar uma legislação que está desajustada, por já não responder às necessidades dos vários agentes envolvidos no cinema (produtores, criadores, distribuidores, exibidores, actores, autores, canais de televisão generalista e por cabo, etc.), e também não dá resposta aos novos modos de produção e distribuição de conteúdos audiovisuais. É verdade que as televisões, inclusive RTP (apesar de ser co-produtora da maioria dos filmes portugueses), dá mais importância ao futebol do que ao cinema; cumprindo com altos e baixos a sua missão de serviço público, no que diz respeito à ficção nacional. Prevalece um quase monopólio da Zon Lusomundo ao nível da distribuição e exibição. Um grupo que entretanto tem sido co-produtor de alguns filmes nacionais, mas que os tira de sala uma semana depois da estreia, porque não estão a ser rentáveis. Os programas europeus (nomeadamente o Media) têm dificuldade em se adaptar às estruturas dos produtores nacionais e estes aos programas europeus. O FICA-Fundo de Investimento para o Cinema e Audiovisual foi um logro: não criou cinema comercial, nem conteúdos rentáveis. Quebrou as expectativas dos produtores de conteúdos, dos canais privados, criou dívidas e conflitos judiciais com alguns dos beneficiados. E não desenvolveu um tecido empresarial ao nível das produtoras, capaz de ser o núcleo para a criação de uma pequena indústria audiovisual. E o Estado não cumpriu com a sua parte na contribuição financeira para o FICA. O ICA-Instituto de Cinema e Audiovisual tem cada vez menos dinheiro para os seus apoios. Já que este é proveniente de uma percentagem das receitas da publicidade nos canais privados. Havendo redução nos investimentos publicitários, entra menos receitas para o ICA. Por isso, resume-se a um organismo sem política, que se limita a distribuir (através dos sempre polémicos concursos) os apoios à produção cinematográfica, e sem que estes sejam monitorizados convenientemente. Por último, os espectadores portugueses não estão habituados, na generalidade, a ir ao cinema para ver filmes falados em português. E, quando vão, sentem-se ludibriados pela falta de identificação com o seu quotidiano. Ou, quanto mais não seja, pelo chorrilho de palavrões inseridos nos diálogos que tentam forçadamente dar um ar mais naturalista às personagens e ao drama. É preciso repensar o número e a importância dos festivais de cinema nacionais, já que muitos servem apenas as pessoas do universo do cinema e passam despercebidos do grande público.
Se tudo isto se vem acentuando e evidenciando o clima de crise do sector, é verdade que a crise não se resume a problemas de financiamento do cinema português ou à exibição e distribuição dos filmes portugueses. É mais do que isso. Um dos grandes ‘calcanhares de Aquiles’ do cinema português é também a promoção e o marketing. Para além das grandes dificuldades que se colocam à internacionalização e às co-produções internacionais. Principalmente no espaço europeu, já que com os países africanos de expressão portuguesa e o Brazil, lá se vai fazendo alguma coisa. Salvo as óbvias diferenças, cerca de 50 % do orçamento dos filmes norte-americanos é destinado à promoção. Em Portugal, as verbas aplicadas na promoção de um filme são insignificantes e tornaram-se num jogo do empurra entre o produtor e o distribuidor. Paulo Branco, num processo que ia desde a produção à venda nos festivais e mercados internacionais dos filmes portugueses, perdeu o seu território. E era o único que sabia promover bem os seus filmes portugueses e europeus –pois em terra de cegos, quem tem olho é rei. Agora é a Zon Lusomundo a dominar não só o lançamento dos blockbusters norte-americanos, mas igualmente o circuito de distribuição e exibição dos filmes portugueses, com todos os benefícios e inconvenientes que daí advêm para os mesmos filmes. As campanhas de publicidade dos filmes independentes geralmente são quase improvisadas. Falta-lhes criatividade e utilizam-se os meios mais fáceis na grande incerteza, que são as datas de estreia dos filmes portugueses nas salas. Isto é só estreiam quando há um buraco na programação dos filmes americanos. A falta de investimento do cinema português em publicidade e marketing, reflecte-se nas imagens e nos materiais gráficos que os produtores proporcionam aos meios, para promover os seus filmes. As coisas têm melhorado com Internet, mas ainda falta muito para se conseguirem grandes resultados. E, por outro lado, há uma escassa contribuição para a criação de um star system e uma noção clara de que os trailers têm que ser bem feitos e eficazes, para cativarem o grande público. Os actores norte-americanos assumem que são a imagem de um filme e que ajudarem na promoção faz parte do seu trabalho. Em Portugal isto não é fácil porque os actores desdobram-se em muito trabalhos para sobreviverem. A maioria dos trailer dos filmes portugueses, realizados pelos próprios produtores em vez de especialistas, não ajudam de todo a levar espectadores às salas. Mesmo que se insinuem com cenas falsamente chocantes. Quanto à internacionalização e apoio à venda no estrangeiro dos filmes portugueses, o empenhamento do ICA é quase nulo. Limita-se aos stands na Berlinale e no Festival de Cannes em colaboração com a Associação de Produtores de Cinema. Seria mais útil estabelecer políticas eficazes de protecção e promoção internacional dos conteúdos audiovisuais nacionais. Talvez criando uma instituição independente que reúna membros de todos os sectores da actividade audiovisual, financiada pelos dinheiros públicos e por uma taxa sobre as bilheteiras de cinema, mas à margem do Governo – como acontece com a francesa Unifrance. Soluções imediatas não são fáceis, e discursos políticos de ocasião são dispensáveis. Há no entanto que aproveitar o ambiente de festa no IndieLisboa. As salas estão cheias, há grande apelo de público e dos profissionais (muitos estrangeiros), por isso este é um grande momento para reflectir e mudar algo neste ‘estado’ do cinema português.

José Vieira Mendes, jornalista

Saturday, April 03, 2010

‘UM LUGAR PARA VIVER’, DE SAM MENDES




A FAMÍLIA TEM SIDO, UM TEMA RECORRENTE DO REALIZADOR SAM MENDES PELO MENOS EM ‘BELEZA AMERICANA’, ‘REVOLUCIONARY ROAD’ E ‘UM CAMINHO PARA PERDIÇÃO’ — ESTE SOBRE UMA ‘FAMÍLIA MAFIOSA’ — MAS QUASE SEMPRE ESTA É RETRATADA DE UMA FORMA MUITO NEGATIVA, DEPRIMENTE E NUCLEAR. PELO CONTRÁRIO ‘UM LUGAR PARA VIVER’ É PEQUENO ROAD MOVIE, FAMILIAR, (ESTRUTURADO EM CINCO EPISÓDIOS E UM EPÍLOGO) QUE TEM UM TOM DE COMÉDIA ROMÂNTICA LIVRE, INTELIGENTE E OPTIMISTA. SEM ACTORES MUITO CONHECIDOS RECUPERA O ESPÍRITO POSITIVO DE PEQUENAS PELÍCULAS INDEPENDENTES, COMO ‘UMA FAMÍLIA À BEIRA DE UM ATAQUE DE NERVOS’ OU ‘JUNO’. UM JOVEM CASAL DE TRINTÕES INTERPRETADOS POR JOHN KRASINSKY (O GENRO DE MARYL STREEP EM ‘AMAR É COMPLICADO’) E MAYA RUDOLPH (UMA ACTRIZ VINDA DA TELEVISÃO E DO ‘SATURDAY NIGHT FIVE’) VÃO TER UM BÉBÉ E DECIDEM PROCURAR O MELHOR LUGAR PARA VIVEREM. PELO CAMINHO VISITAM VELHOS AMIGOS, FAMILIAS EXCÊNTRICAS E OUTRAS MAIS INSPIRADORAS DA FELICIDADE, AO MESMO TEMPO QUE PROCURAM ESSE TAL LOCAL IDEAL PARA SE ESTABELECEREM. MAS AFINAL PERCEBEM QUE SÓ PRECISAM APENAS UM DO OUTRO PARA SEREM FELIZES. UM LUGAR PARA VIVER TEM TEM TRÊS IDEIAS-CHAVE QUE UM DOS FILMES MAIS TERAPÉUTICOS E OPTIMISTAS DA TEMPORADA:
É UMA ANÁLISE SUAVE E DIRECTA DA COMPREESÍVEL INSEGURANÇA COM QUE TODOS NOS DEPARAMOS NOS DIAS DE HOJE EM RELAÇÃO AO AMOR E AFECTOS, À PATERNIDADE, AO NO NOSSO FUTURO E DOS NOSSOS FILHOS; ÀS VEZES NA VIDA É BOM DAR UMA VOLTA PARA VOLTARMOS AO MESMO SÍTIO. APESAR DE O MUNDO E A SOCIEDADE, E DOS SEUS VALORES NÃO ESTAREM À ALTURA DAS NOSSAS EXPECTATIVAS, CONTINUA A VALER A PENA SER POSITIVO, TER ESPERANÇA ACREDITAR NAS PESSOAS E NO AMOR.
A DUPLA DE ACTORES COM DESTAQUE PARA JOHN KRASINSKY CRIAM GRANDES MOMENTOS DE HUMOR NUM FILME, QUE CONSEGUE O EQUILIBRIO PERFEITO DE SER AO MESMO TEMPO SÉRIO, ALEGRE E LEVE, SEM CAIR NA PIEGUISSE OU NA LIGEIREIZA COM TRATA OS SENTIMENTOS. É UM FILME BASTANTE MUSICAL COM UMA BANDA SONORA EM QUE A MAIORIA DOS TEMAS SÃO ACÚSTICOS E COMPOSTOS PELO MÚSICO E GUITARRISTA BRITÂNICO ALEXIS MURDOCH QUE FEZ A MÚSICA DE ‘GARDEN STATE’, ‘VISTA PELA ÚLTIMA VEZ’, E DAS SÉRIES, ‘PRISON BREAK’ E ‘ANATOMIA DE GREY’. TEM AGORA UM ÁLBUM FABULOSO INTITULADO ‘ORANGE SKY’. COMO SEMPRE ACONTECE COM OS FILMES DE SAM MENDES TAMBÉM ESTE FOI MUITO APOIADO PELA CRÍTICA, MAS ACABOU POR PASSAR AO LADO DOS OSCAR. TAMBÉM NÃO DEIXA DE SER UMA IRONIA, QUE ESTE SEJA O PRIMEIRO FILME QUE O REALIZADOR ELEVA POSITIVAMENTE OS GRANDES VALORES DA FAMILIA: AMOR, PATERNIDADE, ESTABILIDADE, SEGURANÇA. UM ANO DEPOIS DE O TER TERMINADO, ANUNCIOU O SEU DIVÓRCIO DE KATE WINSLET.

Tuesday, March 30, 2010

RUMORES DA SELECÇÃO OFICIAL CANNES 2010


A dezasseis dias do anúncio oficial correm já os primeiros rumores sobre os filmes que vão integrar a Selecção Oficial do Festival de Cannes 2010 e consequentemente a lista dos candidatos à Palma de Ouro.

A pouco mais de duas semanas do anúncio correm já em Paris os primeiro rumores sobre os filmes que vão integrar a Selecção Oficial do maior festival de cinema do mundo. A conferência de imprensa do 63° Festival de Cannes (de 12 a 23 de Maio de 2010), vai ter lugar no dia 15 de Abril e continua a reinar a incerteza, já que há vários filmes a serem terminados a contra-relógio para serem anunciados na Competição e chegarem a tempo ao Festival da Croisette. Nos candidatos à Palma de Ouro fala-se da insistentemente da presença quase certa de, Tree of Life, de norte-americano Terrence Malick; Biutiful, do mexicano Alejandro González Inárritu; Tamara Drewe, do britânico Stephen Frears; Another Year, do seu compatriota Mike Leigh, e duas películas coreanas: Poetry, de Lee Chang-dong, e The Housemaid, de Im Sang-soo. Poderão também constar desta selecção, mais dois filmes norte-americanos: Black Swan, de Darren Aronofsky e Miral, de su compatriota Julian Schnabel; Outrage, do japonês Takeshi Kitano, e duas longas-metragens argentinas: Carancho, de Pablo Trapero, e Ciencias Morales, de Diego Lerman. Quanto a títulos franceses a concorrência é muita e movimentam-se a pressões, mas por enquanto não há nada de concreto. Entre os favoritos encontra-se o muito aguardado Carlos, de Olivier Assayas (que apresentaria a sua versão mais extensa da vida do mítico terrorista; La Princesse de Montpensier, de Bertrand Tavernier), e Hors-la-loi, de Rachid Bouchareb. O muito falado Les Petits Mouchoirs, de Guillaume Canet curiosamente não figura entre as possíveis escolhas. A coproducção franco-italiana Copie conforme, do iraniano Abbas Kiarostami, poderá ser seleccionada mas Fora de Competição (tem como protagonista, Juliette Binoche, e no contexto do Festival de Cannes 2010 pareceria incompatível com a competição), assim como You Will Meet a Tall Dark Stranger, de Woody Allen, ou a película francesa de animação Le Chat du Rabbin, de Joann Sfar e Antoine Delesvaux. Entre os candidatos com mais possibilidades de competir na Croisette (numa lista exaustiva que não distinguem as várias secções: Competição, Un Certain Regard, Semana da Crítica ou Quinzena dos Realizadores) destacam-se ainda Socialisme, de Jean-Luc Godard; L'Autre Monde, do francês Gilles Marchand; Tournée, do seu compatriota Mathieu Amalric; Rabbit Hole, do norte-americano John Cameron Mitchell; Uncle Boonmee, do tailandês Apichatpong Weerasethakul; The Essence of Killing, do polaco Jerzy Skolimowski; duas longas-metragens romenas: Aurora, de Cristi Puiu e Principles of Life, de Constantin Popescu; Adrienn Pal, da húngara Agnes Kocsis, R U There, do holandês David Verbeek e All Good Children, da jovem realizadora britânica Alicia Duffy.

Friday, March 26, 2010

PARNASSUS – O HOMEM QUE QUERIA ENGANAR O DIABO, DE TERRY GILLIAN




A INTENÇÃO INICIAL DE TERRY GILLIAN NÃO ERA PROPRIAMENTE UMA HOMENAGEM FANTÁSTICA, MAS ACABOU POR SE TORNAR NUMA ALUCINADA ELEGIA FÚNEBRE AO MALOGRADO ACTOR AUSTRALIANO HEATH LEDGER, FALECIDO QUANDO O FILME ESTAVA AINDA EM RODAGENS.
UMA MISTERIOSA CARROÇA DE FEIRANTES QUE CHEGA ÀS RUAS DE LONDRES OCULTANDO UMA MONTANHA DE SEGREDOS: DR. PARNASSUS (CHRISTOPHER PLUMMER) UM HOMEM CAPAZ DE MANIPULAR A IMAGINAÇÃO DOS OUTROS, PERCORRE AS RUAS DE LONDRES ATORMENTADO POR UMA DÍVIDA PENDENTE PARA COM O DIABO (TOM WAITS). O FUTURO DA FILHA (LILY COLE) ESTÁ EM JOGO E PARNASSUS CONTARÁ COM AJUDA DE TONY (HEATH LEADGER, JOHNNY DEEP, COLIN FERREL, JUDE LAW).
AQUILO QUE À PARTIDA ERA UM PROBLEMA, COM A SUBSTITUIÇÃO DE LEDGER ACABOU POR SE TORNAR QUASE NUM TRUQUE DO DR. PARNASSUS: UMA FORMA CRIATIVA ASTUTA E ENGENHOSA ONDE A IMAGINAÇÃO NÃO TEM LIMITES DE DAR A VOLTA AO INSPERADO. E ALÉM DISSO AINDA PODE CONTAR COM UMA GALERIA DE ESTRELAS: JOHNNY DEEP, JUDE LAW, COLIN FERREL, QUE SE OFERECERAM GRATUITAMENTE PARA HOMENAGEAR O COLEGA E O AMIGO E MAIS UMA VEZ SALVAR UM FILME A GILLIAN, QUE SEGUNDO ELE ATÉ MELHOROU A IDEIA ORIGINAL. CURIOSAMENTE O FILME GANHA EM COERÊNCIA NARRATIVA COM O DESDOBRAMENTO DOS ROSTOS DE TONY.
NO ENTANTO, O FILME NÃO DEIXA DE SER UMA GRANDE FANTASIA, QUE ESTREIA COM ALGUMA OPORTUNIDADE: REMETE NÃO SÓ PARA O UNIVERSO DE TERRY GILIAN, MAS ESTÁ NA LINHA DE ‘ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS’, O GRANDE SUCESSO DE TIM BURTON QUE ESTÁ AGORA NAS SALAS. MAS AO CONTRÁRIO DO ANTERIOR NÃO RECORRE A EFEITOS ESPECIAIS DIGITAIS, MAS ANTES ÀS FORMAS TRADICIONAIS DO CINEMA COMO AS TRUCAGENS (ALIÁS COMO EXIGIA A SUBSTITUIÇÃO DE LEDGER) E AS UNS CENÁRIOS E ILUMINAÇÃO QUE SÃO UMA MARAVILHA, PARA UM ORÇAMENTO BASTANTE BAIXO: CERCA DE 40 MILHÕES DE DÓLARES.
PARA O GRANDE PÚBLICO ‘PARNASSUS – O HOMEM QUE QUERIA ENGANAR O DIABO’, INICIALMENTE PODE-SE REVELAR CONFUSO E DIFÍCIL DE SEGUIR: NÃO HÁ PROPRIAMENTE PROTAGONISTAS QUE SE DESTAQUEM NA HISTÓRIA. FAZ LEMBRAR ‘A LIGA DOS CAVALEIROS EXTRAORDINÁRIOS’ (2003), COM SEAN CONNERY, BASEADO NOS ‘COMICS’ BRITÂNICOS, OU MELHOR NA OBRA DE NEIL GAIMAN. O FILME É UM FESTIVAL DE FANTASIA E TALENTO QUE FUNCIONA COMO UMA SÁTIRA EM JEITO DE FÁBULA FANTÁSTICA SOBRE OS NEGÓCIOS SUJOS, A FALSA FILANTROPIA, O LADO OCULTO DO POLITICAMENTE CORRECTO E A CORRUPÇÃO QUE NOS RODEIA. BRILHAM AINDAM NO FILME CRISTHOPER PLUMER (EM DR. PARNASSUS), UM DOS GRANDES E VETERANOS ACTORES DA ACTUALIDADE E TOM WAITS, EM MAIS UMA DAS SUAS INCURSÕES NO CINEMA, NO PAPEL DO DIABO. AMBOS ESTABELECEM UM FABULOSO DIÁLOGO INTERPRETATATIVO E UMA CERTA QUÍMICA EM CENA: COM PARNASSUS (PLUMMER) A TENTAR ENGANAR O DIABO (WAITS)! O EX- MONTY PYTHON, REALIZADOR DE ‘BRAZIL’, ‘O BARÃO DE MUNCHAUSEN’, 12 MACACOS, ‘O REI PESCADOR’, ‘DELÍRIO EM LAS VEGAS’, É UM GÉNIO MALDITO: TEM ACUMULADO FRACASSOS DE BILHETEIRA, RECUSADO PROJECTOS (WATCHEMEN, FORREST GUMP, OU ALIEN – A RESSURREIÇÃO). A WARNER RECUSOU-O NO PRIMEIRO ‘HARRY POTTER’. NÃO TERMINOU O EM ESPANHA ‘D. QUIXOTE’ QUE RESULTOU NO DOCUMENTÁRIO ‘LOST IN LA MANCHA’. O REI DO AZAR PODERIA SER O TÍTULO DE UM FILME SOBRE UMA CARREIRA INSTÁVEL QUE QUE CULMINA AGORA QUASE NUMA PERSEGUIÇÃO DO DIABO: ALÉM DE ENFRENTAR A MORTE DE HEATH LEDGER, O PRODUTOR BILL VINCE (‘CAPOTE’) MORREU TAMBÉM EM JUNHO DE 2008, ANTES DA ESTREIA DO FILME EM CANNES; TERRY GILLIAN ATROPELADO NO SOHO DE LONDRES FOI PARA O HOSPITAL COMO UM OMOPLATA PARTIDA. O QUE SE PODE CHAMAR UM AZAR DO CARAÇAS!

Monday, March 22, 2010

PONTES PARA ISTAMBUL




Ao falar de Istambul, ao partilhar esta emoção (a mesma que sinto ao ler os romances do Orhan Pamuk), surge-me de imediato a memória do cheiro a Lisboa nas ruas da cidade turca, misturando-se ao odor do kebab. Da parte alta da cidade antiga, de ruas estreitas como Alfama ou o Bairro Alto, vê-se as pontes, o rio, os barcos que parecem cacilheiros, os navios e os cargueiros a atracarem. E Istambul tem aquela luz branca muito parecida com a de Lisboa, realçada pelos minaretes das mesquitas e das abóbadas de azul rosáceo. O Instanbul Modern, um dos mais belos centros de arte contemporânea — e mais bem localizados da cidade, é de um requinte espantoso; o restaurante com esplanada tem uma vista esplendorosa para o Bósforo, muito idêntica à que se tem do Tejo a partir do CCB. Permanece a sensação de que há algo de tão perto e tão distante entre Lisboa e Istambul. Rezar nas mesquitas, encarar os olhos negros de algumas mulheres de véu, cruzar olhares na rua, discutir nas lojas com os vendedores do Grande Bazar e do Mercado de Especiarias, que me falam em turco como se eu fosse um deles. ‘Pontes Para Istambul’, é um regresso desejado a um bairro 'Istambul', dos mais tradicionais aos emergentes. É descobrir (ou relembrar) os cheiros do bazar das especiarias, os ambientes orientais e outras curiosidades, numa verdadeira viagem às margens musicais, literárias e culturais dos dois lados do Bósforo... e à cidade que assegura a união entre a Europa e a Ásia.
Este olhar em Lisboa sobre Istambul nasceu de uma entusiástica descoberta da obra literária do Orhan Pamuk. Da relação entre o cinema e a literatura e de um inconformado diálogo interior entre o concerto das artes e das culturas. Conhecia Ohran Pamuk apenas por ter ganho o Prémio Nobel da Literatura em 2006, até ter encontrado por acaso ‘A Cidadela Branca’, um conto das mil e uma noites, uma espécie de romance iniciático e encantatório da obra do escritor. O documentário ‘Crossing the Bridge - The Sound of Istanbul’ (2006), do germano-turco Fatih Akim — um dos melhores realizadores europeus da actualidade —, despertou-me para a magia dos sons de fusão da música turca actual; aliás, como todos os seus filmes e histórias, é filmado entre a Alemanha e a Turquia. O cineasta turco Nuri Blige Ceylan (‘Longínquo’, ‘Climas’, ‘Três Macacos’) é para mim, desde há algum tempo, uma referência cinéfila. É uma espécie de Rosselini dos nossos dias. Os ‘Poemas de Amor’, de Rumi e os ‘Poemas do Exílio e da Prisão’, de Nâzim Hikmet são livros de cabeceira ideais para quem gosta como eu de adormecer ao som das palavras da vida. Por último, tenho de referir as surpreendentes obras coreográficas de Aydin Teker e Mustafa Kaplan, que passaram por Lisboa através do Festival Alkantara. Numa escala de aeroporto comprei ‘Instambul – Memórias de uma Cidade’. Li-o de uma enfiada e revelou-se ser um guia poético da cidade onde nasceu (e vive uma boa parte do tempo) Pamuk, uma inspirada autobiografia e uma verdadeira obra-prima da literatura. Este livro foi o último impulso para uma primeira viagem, uma imersão na cultura turca e na intimidade da cidade do Corno de Ouro.

José Vieira Mendes, jornalista e consultor para a programação do Festival ‘Pontes para Istambul’

UM TOBOGÃ CHAMADO ROSEBUD…




Na manhã seguinte à cerimónia dos Óscares 2010, todos noticiários dos canais de televisão anunciavam: «o grande derrotado desta noite foi ‘Avatar’ de James Camerom»… Embora se diga que a indústria do cinema pode estar ameaçada pela crise financeira mundial, e mesmo nomeando dez filmes da sua produção para a categoria principal dos Óscares, Hollywood não alterou nem um milímetro a sua concepção de negócio criada no início do século XX. «O cinema é o comboio eléctrico mais caro do mundo», dizia Orson Welles. Apesar do resultado nos Óscares, quem dera a muitas indústrias ou produções de cinema ter o James Cameron como maquinista. Na verdade, este grande sucesso de bilheteira não tem nada de novo, a não ser a combinação de várias tecnologias já existentes que, indubitavelmente, vão alterar a nossa ‘forma de ver’ e, se calhar, não só no cinema e na televisão. ‘Avatar’ já fez receitas superiores a 2.000 milhões de dólares, superando todas as expectativas dos executivos da Fox, cativando o público e uma boa parte da crítica, que teve que dar o braço a torcer. Onde é que está a derrota? Com ‘Titanic’, Cameron já se tinha tornado uma espécie de Salvador, aguardado com tanta avidez como ‘A Vida de Brian’ dos Monty Python. Ressuscitado, ao fim de dez anos, veio para salvar a Meca do cinema, cada vez mais baralhada com as greves dos argumentistas, dos actores e sobretudo imersa numa falta de ideias e criatividade. E até se regressou ao 3D. As motivações ocultas que explicam este novo recorde mundial de bilheteira só podem ser as da promessa de que ‘Avatar’ vai revolucionar o futuro do cinema. E, assim sendo, Hollywood e os espectadores aparentemente já chegaram ao Planeta Pandora, isto é, ao fascínio das imagens em detrimento das ideias. Algo que não é novo, pois os pioneiros do cinema, Samuel Goldwyn ou David O’Selznick já o faziam com eficácia, mas, ao mesmo tempo, com uma visão artística e de risco. Esta nova opção de Hollywood será boa se os espectadores estiverem dispostos a deixar-se fascinar apenas com tecnologias enfabulatórias e ideais frouxos, mesmo que neles estejam implícitas certas motivações ecológicas e pacifistas. No entanto, e vale a pena lembrar, há muito mais emoção num simples plano de um filme de Murnau, Ford, Hitchcock ou Lang e felizmente de muitos realizadores contemporâneos do que em todas as obras completas de James Cameron (ou mesmo de um George Lucas). Ainda bem que ganhou ‘Estado de Guerra’ de Kathryn Bigelow, pela sua visão artística e documental. Pois não se pode deixar que o futuro do cinema elimine por completo nem a arte, nem a magia da descoberta de um segredo como o de um tobogã chamado ‘Rosebud’.

José Vieira Mendes, jornalista

OS CINEMAS DO BAIRRO




As obras no Cinema Europa vão começar no início de Fevereiro, mantendo-se parte da fachada do edifício. E, ao que parece, a Câmara Municipal de Lisboa vai exercer o direito de opção de compra de parte do espaço para a criação de um equipamento cultural. Depois de tantos anos ao abandono, o símbolo de uma geração que cresceu e ainda vive em Campo de Ourique vai finalmente ter uma solução sensata e equilibrada também para os seus proprietários. Não é uma vitória de ninguém em especial mas de todos aqueles que vivem num dos bairros lisboetas com mais carisma cultural, e do qual todos nos orgulhamos. Mas esta decisão deve-se antes de mais a um notável mecanismo democrático inaugurado pela presidência de António Costa (e há que se lhe tirar o chapéu): o “Orçamento Participativo”. Um dispositivo que dá oportunidade a todos os munícipes de contribuírem de uma forma directa para melhorar a sua cidade. Os moradores de Campo de Ourique mostraram bem quanto são participativos, já que, para além da questão referente ao Cinema Europa, votaram ainda num equipamento para a Praça João Bosco (quiosque e parque infantil), no jardim até agora tão desprezado, mesmo em frente ao Colégio Oficinas de São José e ao (lindíssimo) ‘Père Lachaise” lisboeta, o Cemitério dos Prazeres – visitado por muitos turistas que aproveitam o passeio nos Eléctricos 25 e 28. O Cinema Paris, pelo contrário, continua a degradar-se de dia para dia e até dá arrepios passar à porta e ver na fachada do edifício uma tela muito feia: ‘A VERGONHA AINDA NÃO PASSOU POR AQUI!’
O Cinema Alvalade, localizado noutro carismático bairro da cidade, é um excelente exemplo de recuperação, principalmente ao nível do fluxo de público, que bem podia ser pensado e aplicado ao Paris e ao Europa. Porque Campo de Ourique merece estes dois cinemas e ainda existe espaço para outras programações cinéfilas, para além das do mainstream. No último Natal, com as salas dos multiplex de Lisboa repletas de público e com blockbusters em cartaz, recordei-me dos tempos áureos dos Cinema Europa e do Paris. Começaram por ser grandes salas de estreia, passaram depois a apresentar sessões de reprise (reposições), mas nunca perderam aquele estigma do ‘cinema do bairro’. Explicar às novas gerações o que é um cinema de reprise é quase o mesmo que falar-lhes do paleolítico. Na verdade, as grandes salas do eixo da Avenida da Liberdade (São Jorge, Tivoli, Condes, Éden) e outras da Baixa, que estavam quase sempre esgotadas com grandes estreias em cartaz (o último recurso era conseguir um bilhete na Agência Abep dos Restauradores), coexistiam com os cinemas de bairro, espalhados por toda a cidade. Eram os templos das memoráveis sessões duplas, das reposições, de filmes com uma vertente popular ou de arte e ensaio, sujeitos por vezes aos cortes da censura (lembram-se do grito «Ó marreco tem cuidado com a tesoura!!!»?). O chamado cinema de culto chegou muito mais tarde e é quase uma invenção pós-moderna, que culminou nesta eclosão dos festivais. Culto mesmo era ir ao cinema ver determinado filme e não apenas ir ao cinema. Vivia-se e sobrevivia-se no cinema. Entrava-se por vezes numa sala às três da tarde e saía-se às duas da manhã, depois de terminada a sessão da meia-noite. Namorava-se no escuro do cinema e havia até quem fizesse muito mais, sem que a moral pública se importasse muito com isso e impusesse multas ou restrições. O cinema era um mundo à parte ou uma forma de conhecer o mundo. Era um espectáculo acessível, tendo em conta o conhecimento que nos proporcionava em apenas uma sessão. Era a forma mais natural e filosófica de passar o tempo. Por isso, os cinemas de bairro representavam um refúgio para a nostalgia dos reformados em relação às suas épocas de ouro e a base da formação cinéfila e cultural das crianças e dos jovens. Para quem era um miúdo de bairro, ir ao cinema era uma festa, uma ida à Terra do Nunca, sem coca-cola nem pipocas ou sequer uma ida às compras ao centro comercial. Era mesmo ir ao Cinema!

José Vieira Mendes, jornalista

A GRANDE NOITE DO CINEMA EUROPEU




A cerimónia de entrega do EFA-European Film Awards (o correspondente aos Oscares para o cinema europeu), realiza-se hoje à noite em Bochum na Alemanha. Trata-de igualmente de uma grande oportunidade para reflectirmos sobre duas questões: existe uma indústria de cinema europeia e até que ponto ela pode concorrer com o potencial da indústria norte-americana? Em primeiro lugar interessa referir que as nomeações para os EFA foram anunciadas pela Academia Europeia de Cinema há cerca de um mês e estão muito longe de ter o mediatismo dos Oscares. Alguém se lembra sequer de haver alguma referência nos jornais ou nos rodapés dos noticiários da televisão? E é curioso pois nestas nomeações para Melhor Filme, constam dois premiados no Festival de Cannes 09: ‘Um Profeta’, de Jacques Audiard (Grande Prémio do Júri) e ‘The White Ribbon’, de Michael Haneke (Palma de Ouro); ou mesmo ‘O Leitor’, de Stephen Daldry e ‘Slumodog Milionaire’, de Danny Boyle, que estrearam na Europa em 2009 e que toda a gente esquece que são filmes produzidos e dirigidos maioritariamente com dinheiros e equipas europeias. Isto só a nível da nomeação para Melhor Filme. Para consultar todos os nomeados ver: www.europeanfilmawards.eu, até porque é possível que a RTP2 transmita a cerimónia em breve e convém estar bem informado. Efectivamente existe uma grande indústria europeia de cinema. E foi para para afirmar isto que a Academia Europeia de Cinema, presidida agora por Wim Wenders, criou esta cerimónia anual feita à imagem e com a elegância de Hollywood (posso dizê-lo por que já lá estive e vou estar esta noite!) que tem sido extraordináriamente útil, embora pouco eficaz do ponto de vista mediático e da promoção do cinema europeu junto do grande público. A propósito há muito que não me recordo de haver uma nomeação para um filme português. É inegável a representatividade e a existência de uma indústria europeia de cinema, mas é tão diversa e plural nas suas formas e conteúdos, tão variada do ponto de vista linguístico que se torna difícil falar de um verdadeiro cinema europeu mas antes de muitos ‘cinemas europeus’. No entanto há muitas coisas em comum entre um filme lituano e grego ou entre um filme português e checo: são feitos com orçamentos muito abaixo dos valores de referência da indústria de Hollywood; têm preferência por temas de cariz social em relação ao puro entretenimento; assentam no absoluto domínio do estatuto de realizador/autor (cinema de autor); utilizam uma linguagem cinematográfica muito diferente da de Hollywood que cria logo uma certa resistência no espectador. A razão desta resistência no espectador está no facto de que o cinema norte-americano contêm determinados códigos e uma leitura inteligível para qualquer espectador do mundo (universalidade). Ao passo que o cinema europeu (e outras filmografias do mundo) têm muita dificuldade em consegui-lo. Soa quase a estranho para determinados espectadores verem um filme falado em coreano, turco ou mesmo em alemão ou francês. O cinema francês por exemplo tem aquele velho estigma (injusto como podemos ver pela Festa do Cinema Francês) de ser um ‘cinema chato’. E depois à a questão das dobragens que funciona num países e em outros não. Os norte-americanos, espertos como sempre, encontraram há muito uma forma de ‘traduzir ou dobrar’ os filmes europeus aproximando-os dos seus próprios códigos (remakes), acabando por rentabilizar muito boas ideias do cinema europeu. É curioso também saber que em os países da União Europeia produzem por ano centenas de filmes, (em conjunto quase dez vezes mais do que a produção norte-americana) mas infelizmente a maioria estreia apenas ao nível da exibição nacional. Afinal quem gosta de cinema (s) europeu (s)? Infelizmente muito poucos, porque o espectador comum quando vê acaba por gostar. O problema é também as escassas apostas e riscos ao nível da distribuição e exibição nos países europeus. Embora existam programas comunitários de apoio. Mas isso seria um tema para outra crónica. Da cerimónia dos EFA espera-se como sempre o melhor e uma grande noite para o cinema europeu!

José Vieira Mendes, Jornalista

A CINEMATECA DE AUTOR




Com a ida da nova Ministra da Cultura ao Porto para dar um sinal de ‘uma política baseada na proximidade’ (este conceito de proximidade entrou definitivamente no discurso das políticas culturais em vez de descentralização e ainda bem!), voltou-se a falar da criação de um polo da Cinemateca na cidade. Não há muito tempo circulou uma petição online ao Presidente da Câmara, por iniciativa, creio do Cineclube do Porto (que defende igualmente esta extensão da Cinemateca), relativamente a duas salas portuenses: o Cinema Águia D'Ouro e o Cinema Batalha. O Cinema Águia D'Ouro está fechado há décadas e corre o risco de desaparecer dado ao seu elevado estado de degradação. O Cinema Batalha de grande tradição na cidade, foi recuperado mas a sua abertura tem sido adiada. Houve vários projectos para esta sala de cinema, mas todos acabam por desistir porque é difícil rentabilizá-los. Apesar da questão cultural na cidade do Porto ser complexa (esta é a humilde visão de um lisboeta) há que reconhecer que a Fundação de Serralves, Casa da Música e o Teatro São João e o Fantasporto são instituições que nos podemos orgulhar pela forma como dinamizam os seus públicos tranversalmente. Tomaram algumas em Lisboa. Juntar-lhe a reabertura da Casa das Artes e a futura Casa do Cinema Manoel de Oliveira seria extraordinário e uma grande fortuna para todo o País. Resta saber até que ponto uma simples extensão da Cinemateca, permitirá acabar com a carência de exibição cinematográfica no Porto. Em Lisboa já é outra conversa. Por isso antes de se pensar no polo do Porto, e assentar em discursos políticos para agradar às elites nortenhas, urgente é dar mesmo um novo rumo à Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema do qual depende obviamente o resto. A nomeação de um novo director — não está em causa o trabalho do Pedro Mexia, que afirmou que pretende para já apenas cumprir o seu mandato de sub-director — tem sido sistematicamente adiado (e não se percebe porquê?) desde o falecimento em Maio passado do mítico João Benárd da Costa. É tempo perdido fazendo perdurar cada vez mais uma herança pesada, mesmo com o que tem de boa, para quem vier a ocupar no futuro a direcção. Uma das melhores Cinematecas da Europa (é preciso não esquecer o fabuloso espólio filmográfico do ANIM-Arquivo Nacional das Imagens), está em velocidade cruzeiro e parece resistir à mudança, enquanto não tiver um novo líder. Tornou-se numa realidade um pouco semelhante ao cinema português: uma ‘cinemateca de autor’ que mantêm as profundas marcas pessoais deixadas pelo seu último director. E muito difíceis de renovar quanto mais não seja pela forma como todas as instituições e as pessoas que as compôem, sem uma liderança forte e competente reagem às mudanças. É um facto que a Cinemateca, a direcção interina e os seus sempre excelentes programadores, têm feito nestes últimos meses alguma coisa para mudar. Mas é difícil quando não há um cérebro e um rumo a seguir! Continua-se a sentir (e já se sentia há algum tempo…) que a Cinemateca está algo fechada em si própria servindo apenas um grupo interessado, mas restrito de espectadores. E tem que ser mais do que isso inclusive para existir um polo no Porto. Para mudar um pouco bastaria por exemplo começar por comunicar melhor as actividades retirando-lhe um excessivo peso de erudição e distância do grande público, com uma promoção mais eficaz e agressiva. O desdobrável é bonito mas não dá jeito nenhum para consultar a programação. A Cinemateca tem uma imagem demasiado institucional e tem que ser um espaço mais informal ou pelo menos passar uma mensagem de informalidade. Quanto a uma nova direcção e para evitar uma decisão polémica, o melhor mesmo é recorrer a um concurso público. É a forma mais rápida e transparente de encontrar alguém com um novo projecto para a Cinemateca, como aconteceu no Museu do Chiado. As soluções podem vir de onde menos se espera! E assim fugir às pressões dos lobbies e ao mesmo tempo evitar a solução mais fácil que tem acontecido em outras legislaturas e direcções-gerais: a nomeação de uma figura sem competência técnica com um projecto pessoal a curto-prazo, vindo dos aparelhos politico-partidários. Era o pior que podia acontecer!

José Vieira Mendes, jornalista

Friday, March 05, 2010

ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS, DE TIM BURTON


SENDO UM FILME REALIZADO POR TIM BURTON NÃO SE PODIA ESPERAR OUTRA COISA! BURTON CONSEGUIU TRANSFORMAR O MUNDO ONÍRICO DO CLÁSSICO DE LEWIS CARROL NUM DOS SEUS HABITUAIS PESADELOS E FANATSIAS. FEZ ALGUMAS CONCESSÕES JÁ QUE SE TRATA DE UM FILME PRODUZIDO PELA DISNEY E SUAVIZOU UM POUCO AS SUAS GÓTICAS OBSESSÕES NUM FILME PARA TODA A FAMÍLIA. MAS ISTO ATÉ NO BOM SENTIDO PORQUE VAI CONSEGUIR AGRADAR A TODOS E NÃO APENAS AOS ADMIRADORES DO UNIVERSO BURTON QUE NÃO É ACESSÍVEL E ENTENDIDO POR TODA A GENTE! E FÊ-LO PENSANDO NA HISTÓRICA E NA MAIS CONHECIDA VERSÃO EM ANIMAÇÃO DA DISNEY ESTREADA NA DÉCADA DE 50. MAS MESMO ASSIM NÃO É UM FILME DOCE E ACONCHEGANTE COMO OS DAS DISNEY. ESTÁ LÁ NA MESMA O MUNDO SUBTERRÂNEO DE BURTON, POVOADO POR CRIATURAS AMEAÇADORAS E QUE MUDAM DE FORMA, ALIÁS COMO IGUALMENTE NO CLÁSSICO DE CARROL QUE É NA PRÁTICA UM CURIOSO ENSAIO SOBRE A ESCOLHA E A IDENTIDADE. HÁ AINDA UMA QUALIDADE ALUCINATÓRIA NA NARRATIVA, MARCADA POR UMA BANDA SONORA SOMBRIA E DRAMÁTICA, DO SEU HABITUAL COLABORADOR DANNY ELFMAN. O ARGUMENTO ESCRITO EM PARCERIA COM LINDA WOOLVERTON FOGE UM POUCO À VERSÃO ORIGINAL, FAZENDO NA VERDADE UMA CONTINUAÇÃO DE ‘ALICE NO PAÍS NAS MARAVILHAS’. ALICE NÃO É UMA CRIANÇA MAS ANTES UMA JOVEM ARISTOCRATA CASADOIRA COM 19 ANOS. EXPLORANDO ASSIM AINDA MAIS A IDEIA DE UMA VIDA INTERIOR DA PERSONAGEM E NÃO APENAS O DO SONHO DE UMA CRIANÇA CHAMADA ALICE. O FILME É A COMBINAÇÃO DAS DUAS HISTÓRIAS: ‘ALICE NO PAIS DAS MARAVILHAS’ E ‘ALICE DO OUTRO LADO DO ESPELHO’. RODADO COM CÂMARAS CONVENCIONAIS, COMBINANDO A IMAGEM REAL COM A ANIMAÇÃO DIGITAL, MOVING CAPTURE E DEPOIS CONVERTIDO EM 3D, O FILME DECEPCIONA UM POUCO EM RELAÇÃO AOS EFEITOS VISUAIS ESTEREOSCÓPICOS. NÃO É COMO ‘AVATAR’ E NUNCA ALCANÇA A EXPERIÊNCIA QUASE IMERSIVA DO FILME DE JAMES CAMERON. ENQUANTO A PRIMEIRA PARTE DO FILME É UM POUCO LENTA A SEGUNDA DA BATALHA E DA LUTA DE ALICE CONTRA O MONSTRO É EXCITANTE E VISUALMENTE ATRAENTE. QUANTO AOS PERSONAGENS PRINCIPAIS JOHN DEPP NO CHAPELEIRO LOUCO É BRILHANTE. É A SÉTIMA VEZ QUE TRABALHA COM TIM BURTON. É QUASE UMA ESPÉCIE DE ALTER-EGO DO REALIZADOR E NESTE FILME TEVE AINDA UM PAPEL MUITO ACTIVO NA COMPOSIÇÃO PLÁSTICA DA FIGURA DO CHAPELEIRO LOUCO. DESENHOU-A EM AGUARELAS E CURIOSAMENTE ACABOU POR COINCIDIR COM AS IDEIAS DE BURTON EM RELAÇÃO À PERSONAGEM. EM ALICE ESTÁ A JOVEM AUSTRALIANA MIA WASIKOWSKA QUE VAI DAR QUE FALAR POIS É A FIGURA TAMBÉM DE ‘THE KIDS ARE ALL RIGHT’ DE LISA CHOLODENKO MOSTRADO NA BERLINALE, UM FILME SOBRE AS NOVAS FAMÍLIAS. E ALÉM DESTES DOIS HÁ AINDA UM LEQUE DE ACTORES FABULOSOS: HELENA BONHAM CARTER, A MULHER DO REALIZADOR, NA RAINHA DE COPAS, ANNA HATHAWAY NA RAINHA BRANCA, ENTRE OUTROS, E AS INCONFUNDÍVEIS VOZES DE MICHAEL SHEEN NO COELHO E ALAN RICKMAN NA LAGARTA. POR ÚLTIMO JÁ AQUI FIZ UMA REFERÊNCIA PARA A BANDA SONORA DE DANNY ELFMAN E QUE É IGUALMENTE UMA GRANDE APOSTA COMERCIAL. VAI TER DOIS ÁLBUNS: UM QUE SE REFERE À MÚSICA DO FILME E OUTRO CHAMADO ‘ALMOST ALICE’, UM ÁLBUM DE 16 TEMAS, QUE SE JUNTAM AO DO GENÉRICO FINAL ESCRITO E INTERPRETADO POR AVRIL LEVINE, CANÇÕES INSPIRADAS NAS HISTÓRIAS DE ALICE, INTERPRETADAS POR ARTISTAS COMO ROBERT SMITH DOS THE CURE, FRANZ FERDINAND, SHINEDOWN, ALL AMERICAN REJECTS, ENTRE OUTROS.

SHUTTER ISLAND DE MARTIN SCORSESE


MAIS DO QUE UM GRANDE FILME, É UM BRILHANTE E ELEGANTE ‘MIND GAME’ PARA O ESPECTADOR. NEM TUDO O QUE PARECE É! E QUANDO TUDO SE PARECE ENCAMINHAR PARA DETERMINADA RESOLUÇÃO EIS QUE SE DÁ UMA REVIRAVOLTA. ATÉ CHEGAR-MOS AO SURPREENDENTE DESENLACE QUE AFECTA O PERSONAGEM INTERPRETADO POR LEONARDO DI CAPRIO. MARTIN SCORCESE JÁ NÃO TEM O FULGOR E A CRIATIVIDADE DOS TEMPOS DE ‘TAXI DRIVER’, ‘TUDO BONS RAPAZES’ OU ‘CABO DO MEDO’. MAS É UMA VELHA RAPOSA E ADAPTA COM EFICÁCIA UM ROMANCE DE DENIS LEHANE (O MESMO DE ‘MYSTIC RIVER’ E ‘VISTA PELA ÚLTIMA VEZ’). SÓ QUE ESTA HISTÓRIA PASSA-SE NA DÉCADA DE 50, NO PÓS-GUERRA E NO INICIO DA GUERRA FRIA. O AMBIENTE É DE PARANÓIA, DESCONFIANÇA, E ALUCINAÇÃO. ESTAMOS NO PERÍODO EM QUE AO NÍVEL DOS TRATAMENTOS PSIQUIÁTRICOS SE VAI ABANDONANDO A LOBOTOBIA PELAS DROGAS ALUCINOGÉNICAS E PELAS PÍLULAS QUE ANULAM A VONTADE DOS DOENTES. AO NÍVEL MILITAR E DA ESPIONAGEM FAZEM-SE AS EXPERIÊNCIAS DAS LAVAGENS AO CÉREBRO. ALGO QUE COMEÇA A SER PRIMEIRO UTILIZADO NA PSIQUIATRIA. POR ISSO, SHUTTER ISLAND É TENSO, HIPNÓTICO, COMPLEXO E ÀS VEZES ATÉ CONFUSO. TEM VÁRIOS FLASHBACKS PELO MEIO PARA EXPLICAR ALGUNS DOS TRAUMAS E REVELAR AOS POUCOS O PASSADO DO PERSONAGEM PRINCIPAL. MAS SÃO 140 MINUTOS QUE NÃO SE DÁ PELO TEMPO PASSAR! DO PONTO DE VISTA ESTÉTICO, SCORSESE É O PRIMEIRO A ASSUMIR QUE ABSORVEU AS INFLUÊNCIAS DOS FILMES DE SÉRIE B, NEGROS, GÓTICOS E DE MISTÉRIO DOS ANOS 40 E 50 E DE REALIZADORES COMO JACQUES TOURNEUR (A PANTERA), ROGER CORMAN OU MESMO OS FILMES CONSPIRATIVOS DE ALFRED HITCHCOCK. OS GRANDES RESPONSÁVEIS POR ESTAS INFLUÊNCIAS AO NÍVEL DOS AMBIENTES SÃO O DIRECTOR DE FOTOGRAFIA, ROBERT RICHARDSON QUE COSTUMA TRABALHAR COM SCORSESE E O CONHECIDO DIRECTOR ARTÍSTICO DANTE FERRETI. POR ÚLTIMO LEONARDO DI CAPRIO SEM SER AQUELE ACTOR INTUITIVO DA VELHA ESCOLA DA ACTOR STUDIO É TECNICAMENTE PERFEITO COM UMA INTERPRETAÇÃO NOTÁVEL QUE OSCILA AO SABOR DA PERSONAGEM, ISTO É ENTRE O POLÍCIA COM CARA DE MIÚDO E A DE UM HOMEM TORTURADO E PERTURBADO. BEN KINSGLEY É FABULOSO NO DÚBIO DIRECTOR DO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO.

Friday, March 06, 2009

I AM BACK WITH: STANLEY KUBRICK, O DEMIURGO



A 7 de Março comemora-se dez anos do desaparecimento de um dos maiores realizadores da história do cinema. Demiurgo, visionário, génio…é muito difícil ser parco em adjectivação quando nos referimos a Kubrick, talvez porque víssemos nele um outro deus da razão e um criador de mundos.


Stanley Kubrick deixou a sua marca não só no cinema como na ciência, na arte e no planeta, como um dedo em cera mole, ou uma cratera de um meteorito. Com a música de Strauss, o realizador pões naves, estações orbitais e astros nimbados de azul a valsar, em vez de oficiais vestidos de branco nos salões de Viena. Vai para mais de meio século que o cinema de Kubrick começou a rasgar horizontes já que os seus filmes, por muitas razões, tiveram sempre um estatuto especial na produção cinematográfica mundial. São unanimemente considerados verdadeiros acontecimentos, filmes de referência, a partir dos quais se assinalam rupturas, se medem espaços, se procuram desvendar mistérios ou se especulam sobre desvios naturais, políticos, sociais ou científicos que lentamente foram modificando a sociedade e o planeta. O estatuto especial dos seus filmes nasceu talvez com Dr. Estranhoamor (1964), um filme de muitos deslocamentos e desdobramentos, mas antes disso há que ter em conta a retroactividade crítica de Um Roubo no Hipódromo (1956), em relação ao filme negro, ensaiado com a contemporaneidade estrita de O Beijo Assassino (1955). Por outro lado, Nascido para Matar (1987) permite todas as interpretações sobre o cinema e a guerra e a atracção que exercem um sobre a outra como grande género cinematográfico e que Kubrick iniciou em Horizontes de Glória (1957). Shining (1980) apresentou-se como uma reacção ao cinema de terror convencional e como um trabalho radical sobre este género. Uma reacção contra o cinema fantástico norte-americano, então cada vez mais gore, sangrento e nulo numa época em que prosperava sem nexo e que hoje tem os resultados que conhecemos. Com Barry Lyndon (1975) Kubrick faz como que a recriação completa de um mundo e da cor reavaliando a natureza do filme histórico, do formato de ecrã e do som. A propósito de Napoleão, o seu nunca concretizado projecto histórico, Kubrick dizia, que até Barry Lyndon não existia nenhum filme histórico, referindo-se inclusive ao seu Spartacus (1960). Em Laranja Mecânica (1971) o realizador pareceu querer actualizar e encerrar de maneira definitiva a questão da violência, da sua representação e da sua ligação ao cinema, utilizando uma forma quase teatralizada, num registo dramático que se sobrepõe ao longo de todo o filme. 2001-Uma Odisseia no Espaço (1968) corta em dois a história do cinema de ficção-cientifica ou talvez muito mais do que isso. Há um antes e um depois de 2001. Kubrick exerceu sobre a Sétima Arte uma espécie de soberania totalitária, mesmo em Lolita (1962) um filme algo controlado para evitar problemas com a censura. Este hábito do quem manda sou eu, sempre lhe foi familiar até à morte aos 70 anos pouco tempo depois de um visionamento privado de Olhos Bem Fechados (1999). Isto depois de ter deixado os esboços de A.I. – Inteligência Artificial (2001), a apocalíptica visão de Nova Iorque que Steven Spielberg acabou por levar ao ecrã, não sem seguir à risca as instruções e as chaves do mestre.

A metáfora do meteorito de 2001-Uma Odisseia no Espaço, que representa mais uma etapa cumprida e mais um mistério a desvendar na história da humanidade, pode igualmente ser transposta para a obra de Kubrick. O realizador tornou cada um dos seus filmes num passo mais à frente na história do cinema, tanto do ponto de vista criativo como técnico. A sua evolução a nível artístico é visível filme a filme e muitas foram as vezes que contornou as possibilidades técnicas com sentido prático e imaginação.

O BEIJO ASSASSINO/THE KILLER’S KISS (1955): Uma sombra do cinema negro. Intérpretes: Frank Silvera, Jerry Jarret, Jamie Smith e Irene Kane. História: Um boxeur fracassado e uma bailarina tentam escapar-se para Seattle, mas vão ter que enfrentar um gangster sem escrúpulos, que acaba por sequestrar a rapariga. Veredicto: Depois de várias curtas sem grande importância e do pouco conhecido Fear and Desire (1953), Kubrick rodou a partir de um guião original (a única vez que o fez na sua carreira pois daí para a frente partiu sempre de adaptações literárias) este filme herdeiro do estilo e do visual do cinema negro da altura. O cineasta nunca se mostrou muito satisfeito com o resultado, num filme que participa como actriz a sua então mulher Ruth Sobota, e que inspirou The Strange Kiss (1983), de Matthew Chapman.

UM ROUBO NO HIPÓDROMO/THE KILLING (1956): Um thriller matemático. Intérpretes: Sterling Hayden, Coleen Gray, Vince Edwards, Jay C. Flippen. História: Um ex-presidiário reúne quatro homens para levar a cabo, e de forma milimétrica, um assalto a um escritório de apostas de um hipódromo. Só que as coisas não vão acontecer como o previsto. Veredicto: Repetir três vezes a mesma cena de pontos de vista diferentes foi talvez um dos logros mais radicais desta segunda incursão de Kubrick no cinema negro, que tenta assim corrigir e aperfeiçoar o estilo de O Beijo Assassino. A ideia foi buscá-la ao romance de Lionel White (cujos diálogos foram adaptados por outro grande talento do romance policial: Jim Thompson), que tinha já contornos quase simétricos e matemáticos, que colavam que nem uma luva com a linguagem e estilo do realizador.

HORIZONTES DE GLÓRIA/PATHS OF GLORY (1957): Cinema (anti) guerra. Intérpretes: Kirk Douglas, Ralph Meeker, Adolphe Menjou, George Macready. História: 1916 na frente francesa. Perante a negativa de um grupo de soldados em lançar um ataque suicida contra os alemães, um general monta um conselho de guerra para restabelecer a disciplina das tropas. Veredicto: Kirk Douglas financiou uma boa parte de esta obra radical antimilitarista e comprometida, realizada na contracorrente do cinema heróico nos EUA (em plena Guerra da Coreia) e das ideias anti-comunistas primárias da época. O próprio realizador escreveu o argumento para torná-lo mais comercial e apelativo aos espectadores. Mas Douglas segundo consta na sua autobiografia, impôs que se regressasse ao texto original. Foi a primeira vez que Kubrick rodou na Europa.

SPARTACUS (1960): O peplum intelectual. Intérpretes: Kirk Douglas, Laurence Olivier, Jean Simmons, Peter Ustinov, Tony Curtis. História: O escravo trácio Spartacus escapa-se e vai comandar um exército de escravos, contra Roma, refugiando-se nas montanhas e tentado sair da península Itálica por mar, mas acaba traído e derrotado. Veredicto: Kubrick substitui Anthony Mann logo no inicio da rodagem, que deixou uma sensação de que poderia ter ido mais longe. Não gostou do argumento do blacklisted Dalton Trumbo e além disso teve que cortar cerca de 12 homo eróticos minutos de uma cena entre Olivier e Curtis. No entanto, o estilo meticuloso do realizador está presente nos elegantes travellings, nos enquadramentos que obrigaram a alterar decors e nas cenas de batalha marcadas pela visão geométrica do realizador. Spartacus inaugurou a presença de Kubrick nos Oscars, ganhando quatro estatuetas, embora nenhuma directamente para o realizador.

LOLITA (1962): Um filme escaldante. Intérpretes: James Mason, Sue Lyon, Shelley Winters. Peter Sellers. História: O professor Humbert Humbert sente um enorme fascínio por Lolita, uma atraente adolescente, ao ponto de casar-se com a mãe para ficar mais próximo dela. Veredicto: Depois da triste experiência de Spartacus, Kubrick assegurou o controlo absoluto de Lolita, convencendo mesmo Nobokov a fazer a adaptação do seu polémico romance. De qualquer modo o erotismo pedófilo do romance foi sustentado pela actriz Sue Lyon, de 14 anos que efectivamente aparentava ser mais velha. No entanto o sexo (e por razões da censura) deixou de ser o centro principal do filme passando a intriga para o assassinato do personagem interpretado por Peter Sellers. O camaleónico trabalho do actor teria uma extraordinária continuidade em Dr. Estranhoamor, que partilha com Lolita um tom de humor negro e de universo surrealista.

DR. ESTRANHOAMOR/DR. STRANGELOVE (1964): A farsa política. Intérpretes: Peter Sellers, George C. Scott, Sterling Hayden. História: Um paranóico general norte-americano ordena um ataque nuclear contra posições soviéticas. Entretanto, no Pentágono tentam resolver o desaguisado. Veredicto: Esta comédia de pesadelo, como a definiu o próprio Kubrick foi rodada nos estúdios Shepperton em Londres (a partir daí a sua residência de trabalho) e embora tenha limado o inicial tom de comédia (com a guerra de tartes em pleno Pentágono), não descartou a possibilidade de dar ao filme uma carga erótica que não foi possível no óbvio Lolita. As armas e as suas fálicas conotações alcançam um ponto culminante quando Slim Pickens cavalga sobre uma enorme bomba. Kubrick recebeu a primeira nomeação para um Oscar.

2001-UMA ODISSEIA NO ESPAÇO/2001: A SPACE ODYSSEY (1968): A história do Homem. Intérpretes: Keir Dullea, Gary Lockwood, William Sylvester, Daniel Richter. História: Uma nave com astronautas viaja até Júpiter, mas vão ter que enfrentar o computador central e o aparecimento de uns misteriosos monolítos. Veredicto: Foi em primeiro lugar o filme que arrancou a ficção científica da série B, ao tratar de temas metafísicos, tão importantes como a relação do homem com a máquina (esse mítico HAL, cujo nome muitos dizem que se inspira na sigla IBM, mas retrocedendo uma letra no alfabeto), o enigma da origem do homem e da inteligência. É o grande exemplo de procura de um cinema total, levada ao extremo na elipse narrativa (o osso primitivo que se transforma em nave espacial), na coreografia visual, nos efeitos especiais, e no rigor que levou a recusar a banda sonora de Alex North, substituíndo-a antes e já depois da estreia do filme.

LARANJA MECÂNICA/A CLOCKWORK ORANGE (1971): A parábola futurista. Intérpretes: Malcom McDowell, Patrick Magee, Michael Bates, Warren Clark. História: Numa sociedade futura Alex De Large e os seus três amigos, dedicam-se ao vandalismo até que o sistema acaba por neutralizá-los. Veredicto: Com o seu estilo e interesses temáticos bem definidos Kubrick começa a planear os seus filmes como desafios formais e tecnológicos. Na banda sonora contou, por exemplo, com Walter Carlos, pioneiro dos sintetizadores. Além disso para criar o ambiente sofisticado e frio do filme, escolheu as melhores localizações com a ajuda de várias revistas de arquitectura e um inovador programa informático.É preciso não esquecer que estamos nos anos 70. O erotismo (os falos gigantes e assassinos) e a polémica (com acusações de fascista e violência gratuita inclusive) foram a marca de umas das suas obras mais pessoais.

BARRY LYNDON (1975): O filme de época. Intérpretes: Ryan O’Neal, Marisa Berenson, Patrick Magee, Hardy Kruger. História: Depois de ter passado pelo exército, ter desertado e feito fortuna, um plebeu chamado Barry conhece Lady Lyndon que vai introduzi-lo na sociedade e na aristocracia britânica. Veredicto: Foi mais um tour de force técnico ao utilizar dez sofisticadíssimas objectivas da Zeiss, utilizadas em missões da NASA, para poder rodar à luz de velas. Foram necessárias cerca de 1500 fotografias de localizações, detalhadas recriações inspiradas na pintura de época, e muitas discussões com o seu director artístico num filme que arrecadou quatro Oscars e novamente uma nomeação para Kubrick.

SHINING/THE SHINING (1980): Ensaio sobre o terror. Intérpretes: Jack Nicholson, Shelley Duvall, Danny Lloyd, Scatman Crothers. História: Jack Torrance chega com a sua familia a um hotel para encarregar-se da sua gerência. O seu antecessor no cargo tinha enlouquecido e morto a sua própria familia. Veredicto: O cineasta levou quase um ano só a preparar os cenários, construindo-os à escala real e a partir de modelos fotografados pelo seu director artístico. A longa cena aérea do início antecipa, com extrema perfeição técnica, a utilização em quase todo o filme da então pioneira steadicam. Esta nova e estável câmara unida ao corpo do operador permitiu a Kubrick planos, enquadramentos e movimentos até então inéditos. Foi o primeiro realizador a usar e a abusar desta tecnologia hoje praticamente usual em rodagem.

NASCIDO PARA MATAR/FULL METAL JACKET (1987): A descida aos infernos. Intérpretes: Matthew Modine, Adam Baldwin, Vincent D’Onofrio. História: Um grupo de recrutas vai iniciar a sua instrução militar. É o seu primeiro contacto com um envolvente de violência, que culmina com uma missão na guerra do Vietname. Veredicto: Kubrick reproduziu as ruas da cidade vietnamita de Hué numa central de gás abandonada nos arredores de Londres. Cerca de 200 palmeiras foram implantadas e mais de 100.000 plantas artificiais vindas de Hong Kong, criaram o ambiente tropical. Como na maioria dos seus filmes Kubrick manteve com os seus colaboradores uma relação que alternava entre a confiança e um controlo férreo de cada uma das actividades. O argumentista Michael Herr (ver Leituras), recorda que durante cerca de três meses e meio lhe enviou quase diariamente as páginas de argumento que ia escrevendo. Foi com esse material que Kubrick trabalhou sete meses seguidos e assentou as bases do que seria o argumento definitivo.

DE OLHOS BEM FECHADOS/EYES WIDE SHUT (1999): Um thriller erótico. Intérpretes: Nicole Kidman, Tom Cruise, Madison Eginton, Jack Sawiris. História: Inspirada na obra História de Um Sonho, de Arthur Schnitzler, escrita em 1926 sobre um psiquiatra casado que tem uma agitada vida sexual com alguns dos seus pacientes. Veredicto: Tom Cruise e Nicole Kidman já tinham contracenado em Dias de Tempestade e Horizontes Longínquos, mas nunca de um forma tão intensa como neste último filme de Kubrick. Estiveram praticamente um ano a trabalhar exclusivamente neste filme carregado de cenas sexuais explícitas que levantaram grande polémica nas televisões norte-americanas. O casal ao receber a notícia da morte de Kubrick poucos dias depois de terminada a versão final do filme declarou que estavam tão desgostosos como se fosse uma pessoa da sua família, dada a relação próxima que estabeleceram com o realizador.

DEZ LIÇÕES DE KUBRICK PARA ENTENDER O (SEU) CINEMA.

1. CINEASTA DO SUBCONSCIENTE: Na realidade o cinema opera a um nível muito mais próximo do que a música, a pintura ou a palavra impressa. Em filmes como 2001-Uma Odisseia no Espaço tentei criar uma experiência visual, algo que se sobreponha ao verbal e penetre directamente no subconsciente com um conteúdo emocional e filosófico. Justamente como acontece com a música.

2. PESQUISADOR DE HISTÓRIAS: Sinto um grande respeito por essa coisa única e milagrosa que é uma boa história. Antes de rodar uma cena tento que algo aconteça diante dos meus olhos e que mereça ser filmado. Então a forma de filmar já não é um problema: como filmar é simples; o que filmar isso sim é difícil.

3. AUTOCRÍTICO: Não gosto muito de Spartacus, e em relação a Lolita, sei muito bem que não consegui captar o quanto tem de mágico o livro de Nobokov, ou seja o seu estilo. Lolita é um dos exemplos mais significativos de que existem grandes livros que nem sempre dão filmes extraordinários.

4. CRÍTICO E CINÉFILO: Estou consciente de que não sei nada sobre fazer cinema, mas estou convencido de que não consigo fazer pior do que a maioria dos filmes que se vêem por aí. Os maus filmes dão-me a coragem necessária para fazer um novo filme. Na verdade vejo praticamente tudo o que estreia, excepto quando estou a rodar. Mas já não estou à espera de sair maravilhado quando saio do cinema, ou ser transportado a outro mundo, já só quero é divertir-me.

5. ERMITA: Gosto de estar à margem de toda a falsidade de Hollywood. Quando lá vivia toda a gente me perguntava se estava tudo bem, esperando que dissesse que tinha estado com alguém famoso ou se tinha discutido com alguma estrela.

6. SATISFEITO: Quem já teve o privilégio de dirigir um filme sabe o que é como tentar escrever o Guerra e Paz a subir uma montanha russa ao mesmo tempo. Mas quando terminamos não deve haver muitas alegrias na vida que se possam igualar a essa sensação.

7. IMPROVISADOR: É bom reflectir antes, mas nunca se pode explorar todas as possibilidades de uma cena, mesmo quando não se está num plateau. Não se consegue o máximo de uma cena sem corrigi-la no momento da rodagem.

8. AUTOSUFICIENTE: Além do divertimento que é rodar um plano pessoalmente, carregando eu próprio a câmara, dei conta que é virtualmente impossível explicar o que se quer de um plano com a câmara nas mãos do operador, por muito talento e sensibilidade que ele próprio tenha.

9. ESSENCIAL: Não me afecta o facto de perder material durante a montagem. Corto tudo até ao esqueleto. Na montagem queremos desfazer-nos daquilo que não é essencial.

10. GUIA PARA OS ACTORES: O trabalho do realizador consiste em fornecer as ideias ao actor, não dizer-lhe como deve representar ou os truques que deve utilizar quando está a actuar. Não há maneira de dirigir o actor se ele não tiver talento.

in PREMIERE nº7/2ªSérie/Março 09

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