A grave crise política na Turquia, por um aparente regresso ao islamismo, devido à decisão constitucional de permitir às mulheres usarem o véu nas universidades públicas, tem provocado uma exagerada reacção de alguns governos europeus (Espanha e França, entre outros), e uma certa islamofobia dos preservacionistas culturais do ocidente, em relação às restrições que o Islão impõe à indumentária, liberdade e direitos das mulheres nos países islâmicos. Efectivamente, esta reacção está fortemente condicionada pelo clima social e político mundial, depois dos atentados de 11-S em Nova Iorque e 11-M em Madrid.
A Burka Vermelha, uma belíssima curta-metragem de
Roxana Pope, integrado no ‘Tão Perto/Tão Longe’ do ciclo ‘Distância e Proximidade’, que está a decorrer na Fundação Calouste Gulbenkian, é um grande exemplo da interculturalidade e de como muitas mulheres iranianas tapam o rosto de livre vontade, com as coloridas
Nequab, símbolos de beleza e míticos adornos, descobertos por Marco Polo no século XII, e que deram origem às máscaras do Carnaval de Veneza.
A propósito ainda desta temática recorde-se as teorias do ilustre Professor
Kwame Anthony Appiah, cidadão norte-americano de origem britânica-ganesa, apoiante de
Barack Obama, e ele próprio uma referência viva das teorias da diversidade cultural, nas suas obras
The Ethics of Identity e Cosmopolitanism: Ethics in the Strange World, obras essas incontornáveis para o estudo da interculturalidade. Appiah examina as relações lógicas entre os valores e as ideias que sustentam o cosmopolitismo, patriotismo, liberalismo avançando a tese de que estes ideais e sentimentos, longe de serem intrinsecamente contraditórios, podem e devem ser usados livremente pelos homens e mulheres contemporâneos em busca de identidades que protejam as suas liberdades, autonomia e compromissos com a ordem democrática e individualista. Na verdade, e neste sentido de liberdade, de uma globalização humanista, de aceitação entre diferentes, recriação de novas culturas e encontro de civilizações, as mulheres islâmicas têm tanto direito de usar as suas indumentárias tradicionais (
Hiyab, Burka, Niquab, Shayla, Chador), como os jovens africanos de usar as camisas coloridas, com o nome e o número estampado nas costas de um qualquer ídolo do futebol mundial.
O feminismo e alguns governos ocidentais consideram o véu um símbolo de submissão e associam-no muitas vezes ao fundamentalismo islâmico. No entanto, muitas mulheres islâmicas, sejam elas progressistas ou conservadoras – incluem-se, por exemplo as esposas do primeiro-ministro
Erdogan (líder do AKP) e do presidente da República da Turquia,
Abdulá Gul, um factor que de certo modo agudizou esta crise pró-nacionalista – usam o véu porque querem e acham bonito. Dir-se-ia que, o ocidente tem quase uma obsessão, contra uma elegante indumentária que faz parte da sua cultura e que não é de todo um símbolo de submissão social, nem de restrição aos seus direitos. Por outro lado, esta reacção anti-véu faz com que muitas mulheres com vontade de se cobrirem não o façam por medo ou receio de discriminação ou represálias. A necessidade de defender a sua identidade perante esta islamofobia ocidental fez com que se refugiem no mais banal dos argumentos: a moda. As mulheres islâmicas usam véu porque a tradição e o Corão assim o impõem, (sentem-se mais protegidas e respeitadas perante Deus), mas é visível que a mediatização da moda fez com que muitas raparigas (mesmo ocidentais) se identificassem ironicamente com alguns designers de moda, que cobrem o rosto dos manequins. E, assim, sintam a utilização do véu como uma moda, uma forma elegante de andarem bem vestidas, mantendo ao mesmo tempo a sua identidade cultural e orgulho de serem mulheres e islâmicas. As turcas, integradas numa Europa que se desejaria mais unida culturalmente, riem-se desta visão demasiado redutora e da tanta preocupação por andarem tapadas, pois fazem-no quando querem e quase sempre em dias festivos, independentemente das medidas constitucionais. O ocidente parece recusar que a beleza e a sensualidade das mulheres islâmicas não se encontram na anorexia, no bronzeado do rosto, ou na liberdade para mostrar um decote mais audaz ou as pernas despidas e realçadas por uma saia curta ou uns calções. A nudez, a banalização do corpo, da sensualidade e do sexo, o hedonismo, tornaram-se óbvios símbolos da pós-modernidade das sociedades ocidentais, sobrepondo-se à fantasia e ao exotismo erótico oriental fortemente presentes na literatura tradicional. Uma coisa são os véus, outras são as questões dos direitos das mulheres, da violência exercida sobre elas, do acesso ao trabalho e aos lugares de poder no Estado, que está enraizado nas sociedades islâmicas, como é retratado num belíssimo documentário,
What a Beautifull Democracy!, uma realização colectiva, que reflecte a batalha das mulheres para serem eleitas para o parlamento turco, obra esta inédita em Portugal. A questão dos direitos das mulheres, da submissão, continua apesar de tudo a ser mais ou menos abrangente às sociedades ocidentais, mais progressistas ou mais conservadoras.
Hebba Aref e
Shamina Ablelfadeel, duas cidadãs norte-americanas, num comício de Barak Obama, foram impedidas de subir ao palco, porque usavam véu. O mais que provável futuro presidente do EUA, aquele em quem todo o mundo deposita enormes esperanças, não quis juntar-se a estas duas mulheres, não fossem os seus votantes pensarem que estaria do lado das oprimidas mulheres islâmicas, contra a imagem de uma mulher moderna, democrata, emancipada e com pleno acesso ao poder como a Senhora
Clinton.
José Vieira Mendes, jornalista, Julho 2008